Uma nota sobre o acordar das mãos

01/06/2017

Por Marcela Fernandes de Carvalho

 

Foi no fuso de uma roca de fiar que a jovem princesa Bela Adormecida espetou seu dedo e caiu em um sono profundo de cem anos, segundo o conto dos Irmãos Grimm. O fuso é justamente o material que sela o destino da heroína e, com isso, de toda narrativa; um objeto que não conhecemos mais. 

Assim como o fuso, a agulha, a roca, o cardador, o tear, o pente, o pedal, o dedal, a almofada, o bilro e tantos outros objetos que pertencem ao universo da costura e das artes do fio, aos poucos foram desaparecendo das nossas vidas com a chegada da indústria, talvez. São pouquíssimas as pessoas que ainda sabem prender um botão ou cerzir um furo. Com isso, as mãos que tanto trabalharam tramando fios e vidas também se tornaram adormecidas e, para acordá-las, é preciso um trabalho de subversão, de espera, de respiro, de pausa. 

 

Bordado de Marcela Fernandes de Carvalho

Há uma imagem no conto que se mantém nas diversas versões da história da princesa adormecida. Quando é ainda um bebê, o rei, seu pai, ordena o fim da fiação e manda queimar ou remover todas as rocas de fiar do reino e arredores. Assim, a menina cresce alheia a seu destino, sem desconfiar de que algo lhe aconteceria e que era sabido por todos.

A heroína, a mais passiva das guerreiras, tem sua bravura. Ela repousa, ela espera, e os outros compartilham de sua espera. A menina, em idade de amadurecer como mulher, rompe a proteção do pai e, ao encontrar um objeto fálico e proibido, desobedece, é avessa. E a força da transformação é tão intensa que ela não aguenta passar acordada e adormece. A penetração do fuso adormece a heroína, mas também a desperta para uma outra forma de estar viva que antes ela não conhecia. É esse o ponto auge do conto: o que desperta com o adormecimento? Como viver a experiência da vigília, do sonho, estar acordado e dormindo, vivo e morto, rememorando e esquecendo simultaneamente?

A Bela Adormecida é uma narrativa cheia de imagens têxteis, pois a lasca de linho ou a ponta afiada do fuso são os causadores de toda intriga. Trata da beleza do nascimento e do medo que a morte logo causa. Mas, principalmente, o conto fala daquilo que é essencial para a aprendizagem da costura com linha e agulha – o contato com o material.  

O medo de que as crianças se machuquem é enorme por parte dos adultos. Há alguns anos dou aula de costura em escolas e outros espaços para crianças de todas as idades. Escuto constantemente a pergunta: “Mas você ensina costura pras crianças? Vocês usam agulha sem ponta, né?”. Ao que gosto de responder orgulhosa que não.   

As crianças pedem e precisam conhecer as verdades sobre as coisas, precisam tomar mais banho de rio e menos banho de piscina, chupar mais fruta do pé e tomar menos suco de caixinha e, assim, ter a chance de encontrar a substância de verdade que há dentro das coisas. Se a ponta aguda e afiada da agulha fura, é um material que pode ser usado com certo cuidado e é o contato com sua superfície real que pode gerar experiência. 

A palavra material tem o radical mater, assim como a palavra materno, o que nos faz pensar que há uma força geradora nos materiais, principalmente os naturais, de acolher a manipulação e as diversas transformações durante o uso. O mater, no sentido de matriz, de origem, situa um polo de contato gerador de vida, daquilo que é capaz de transformar e de se deixar transformar, assim como a mãe que gera o fio da vida e o amamenta.   

Numa versão menos conhecida de A Bela Adormecida, escrita por Giambattista Basile, o príncipe chega e a princesa não acorda. Ele se apaixona por ela, "colhe-lhe os frutos do amor" e ela segue adormecida. O príncipe parte para seu reino e nove meses depois nascem os gêmeos Sole e Luna, que darão o nome a essa versão do conto. A beleza da presença das crianças traz um alto grau de encantamento para a história, nos evocando ainda mais para o acordar.

Sole e Luna são gerados no sono, em um ventre adormecido, como a própria virgem Maria que concebe a vida do Deus menino sem pecado, dá à luz e permanece adormecida. É o nascimento desses bebês e a busca da vida nova pelo alimento gerador – o leite materno – que fazem a mãe despertar. Toda a Via Láctea escorre por esse seio que produz a cada sugada de seu fruto, fio de seu fio, uma nova fonte de vida. O leite alimenta também quem o produz, porque é seiva e fortalece a circulação do sangue no corpo da mãe deixando-o mais forte.

Nessa versão do conto, buscando o bico do seio para mamar, um dos bebês suga o dedo da princesa adormecida e suga junto a lasca de linho que a feriu. Só então, ela acorda. O filho, ao mamar, suga muito mais que seu alimento, ele suga a própria vida, suga a história que vem antes dele. E faz brotar do seio daquela relação a história que virá depois.  

Os materiais, de alguma forma, nos ensinam sobre a maneira como gostariam de ser usados. Quando “perigosos” como a agulha trazem um tom de seriedade e atenção que ajudam a encontrar a experiência do gesto de costurar. Tive a felicidade, há pouco tempo, de ouvir um menino de sete anos me perguntar: “Essa agulha é com ponta, né?”. Ao ouvir resposta afirmativa, exclamou orgulhoso: “Yeeehsss! Legal!”. E voltou, atento, para sua tarefa.  

Marcela Fernandes de Carvalho, formada em Design e mestre em Literatura pela PUC-Rio, é contadora de histórias e professora de costura, bordado e outras artes desde 2007. Ilustrou alguns livros como A linha e o linho”, do compositor Gilberto Gil (Escrita Fina Edições, 2013). Esta reflexão advém de sua tese de mestrado: Comprida história que não acaba mais: do tecer ao texto e vice-versa.
 

Ilustração da autora

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