Tudo por um grão de areia

22/01/2019

 

“Se os grãos de areia falassem, o deserto estaria cheio de vozes perdidas.

Mas os grãos são mudos.

Menos eu, o menor grão do mundo.”

 

É com essas palavras que tem início Enreduana, lançamento de Roger Mello e Mariana Massarani. A história trata da primeira poeta de que se tem notícia no mundo, contada do ponto de vista de um grão de areia, matéria-prima que compunha as placas de barro. Era nessa plataforma que circulavam, naquela época, as informações mais importantes da Mesopotâmia.

Dar vida a esse narrador nada convencional não foi tarefa fácil, como conta Helen Nakao, supervisora de produção da Companhia das Letras. É que os autores optaram por transmitir ao leitor a experiência da leitura na placa de barro, como era feito na época. Juntos, pensaram em um projeto gráfico que possibilitasse isso, tanto pelo formato do livro quanto por suas cores. Aí reside a dificuldade de impressão de Enreduana.

Primeiro, no entanto, é preciso esclarecer a forma como são feitos livros, revistas, quadrinhos e impressões consideradas “padrão”. Para esses produtos, é utilizada a escala de cores CMYK (ciano, magenta, amarelo e preto). São apenas quatro cores, mas, se combinadas da forma correta, são capazes de formar diversas outras presentes nos livros da sua estante. Elas são registradas na gráfica, pelas impressoras, uma após a outra. “São impressas sequencialmente, usando chapas metálicas que funcionam como carimbos que, ao serem sobrepostas, geram uma ampla gama de cores. Por exemplo, o Yellow sobre o Magenta gera um laranja.”

 

 

 

O cobre metálico, uma das cores que mais chamam a atenção em Enreduana, não pertence à escala CMYK, mas a um outro sistema de cores, o Pantone. É um tom que, quando impresso no papel fosco poroso, traz um efeito semelhante à "sensação visual e tátil da areia", pois possui pequenos cristais minerais, como explica a designer. Na escala Pantone, também foram utilizadas cores como o preto, que reproduz a escrita e o barro, e as duas cores neon, que dão ares contemporâneos ao livro. “Diferente do CMYK, o Pantone já vem com a mistura pronta, o que traz a vantagem de ter tons divertidos e luminosos, como os neons e o metálico.”

 

 

Como essa tinta não está presente na escala de cores utilizada para o restante do livro, está sendo impressa separadamente. Por isso, há ainda a preocupação de que as marcas das outras cores coincidam exatamente com esta, ou seja, que "coincida o registro", como explica Helen. Isso dificulta muito mais a impressão do livro e aumenta a possibilidade de erros, já que o papel tem de entrar duas vezes na máquina, o que geralmente não acontece.

A secagem também é lenta. O pantone cobre metálico, além de possuir os cristais que retardam esse processo, é muito absorvido pelo papel poroso, o que faz com que ele permaneça úmido por mais tempo. Outros fatores, como o clima no dia da impressão, também podem influenciar nessa etapa da produção. "É uma carga de tinta muito pesada e úmida. Se eu continuo passando as cores normalmente como eu faria na quadricomia, isso vai decalcar, borrar, manchar. Então passamos primeiro o pantone, deixamos que seque, esperamos três dias, e só depois entra na máquina de novo."

O papel faz toda a diferença. Para que possamos entender melhor, Helen dá exemplos. Diz que a cor escolhida por Roger e Mariana é a mesma que compõe os rococós presentes em Malala e seu lápis mágico. A diferença é que aquele papel é liso acetinado, o que faz a tinta refletir mais a luz. No papel poroso, escolhido pelos autores, ela não reflete com a mesma intensidade, deixando o efeito metálico mais sutil, criando a sensação de areia. A tinta é tão absorvida por esse tipo de papel que ficou rala, foi necessário adensá-la. Isso, claro, gerou mais demora na impressão e uma secagem ainda mais demorada.

 

 

“Quando o material entrou em máquina, o metálico ficou muito claro e foi necessário que a cor fosse reformulada. Com a tinta mais densa do que o padrão, nossa suspeita se confirmou e ela começou a borrar, por isso precisamos parar o trabalho pela segunda vez para que a secagem do metálico ocorresse separadamente.” Até pensaram em imprimir a tinta metálica por último, o que, segundo Helen, seria o mais sensato. Mas o risco de ele borrar as outras cores devido à sua densidade mudou os planos. Foi, então, a primeira cor a ser impressa.

Mesmo assim, mais empecilhos apareceram no processo: depois de seco, o papel dilatou muito mais do que o esperado. Os tais “carimbos” da escala CMYK já não encaixavam mais. A diferença de sobreposição das cores, que costuma ser inferior a 1 mm, chegou a 0,5 cm. Para reparar esse problema, as chapas foram refeitas com ajustes que variaram caso a caso, para evitar os filetes brancos.

 

 

O livro também contou com outras tintas de secagem difícil, como os tons de pantone neon, semelhantes àqueles presentes em Carvoeirinhos, livro que também leva a autoria de Roger Mello. "É um material delicado. Tudo isso para ganhar muito brilho e luz num papel que já é fosco e não traz esse efeito", diz. "Seria muito mais fácil colocar isso num papel couchê brilho, por exemplo. Ia ficar tudo brilhante, o neon ia estourar de luz, o metálico ia ficar muito visível, assim como fica em Malala e o lápis mágico. Só que transforma o material em uma outra coisa. Você perde essa coisa da areia, do deserto."

 

 

No final, Helen considera o resultado acima das expectativas, com cores vibrantes e um cuidado artesanal. “A produção de Enreduana nos ensinou como é delicioso navegar por águas desconhecidas e pensar em soluções criativas para viabilizar novas possibilidades. No fim, como a Mariana Massarani gosta de dizer: Foi uma farra!”.

 

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