Siga o fio do cordel!

19/11/2021

Por Januária Cristina Alves

Dia 19 de novembro é o dia do cordelista. A data foi escolhida por ser o aniversário de um dos maiores cordelistas brasileiros, Leandro Gomes de Barros, autor de mais de mil folhetos nos quais cantou, contou e recontou as mais belas histórias de nossa tradição oral. Para o escritor e poeta Carlos Drummond de Andrade, o cordelista era o “príncipe dos poetas” e também o “rei da Poesia do Sertão, e do Brasil em estado puro”. Em meu livro recém-lançado pela Companhia das Letrinhas Heróis e heroínas do cordel, escolhi duas histórias narradas por ele: “História de Roberto do Diabo” e “História da Donzela Teodora”.

Tal como aconteceu com os outros cordéis do livro, minha seleção deveu-se ao fato de que tratam-se de histórias protagonizadas por heróis e heroínas “como manda o figurino”: os personagens cumprem sua jornada tal como descreveu o mitólogo Joseph Campbell em seu livro icônico O herói de mil faces - o herói é aquele que não vive apenas para si, o objetivo de sua busca é conquistar o poder e sabedoria para servir aos outros.

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Januária Alves fala sobre a jornada do herói nos cordéis que selecionados para seu livro mais recente

Não que o herói seja santo ou mártir (pode até ser), mas os heróis e heroínas representam o que há de mais nobre em todos nós, que é o desejo de transcender, de superar as amarras desse mundinho que habitamos e existir para além da “evasão ou do êxtase”, como diz o mitólogo, em busca de um sentido maior para respirar.

 

Heróis e jornalistas

Leandro e outros cordelistas, como Severino Borges da Silva (que no livro nos brinda com “O verdadeiro romance de João de Calais)” e Joaquim B. de Sena (com seu folheto “A História de João Valente e o dragão de três cabeças”), além de tantos outros brasileiros, foram também heróis. Tal como os personagens que cantavam em suas setilhas e sextilhas, desbravaram o sertão levando sua magia a um Brasil inóspito, que vivia desigualdades de toda ordem, além de serem vítimas de uma política que nunca primou pelo interesse pelo outro, pelo bem comum. Nossos bravos cordelistas faziam sua crítica social de forma inteligente, crítica, cifrada. Eram os jornalistas de seu tempo, levavam notícias de um mar sem fim para onde a vista alcançava. E assim, deixaram sua marca, que ainda testemunhamos hoje nessas histórias eternas.

 

A jornada do herói nos cordéis escolhidos por Januária Alves em seu novo livro

Ilustração de Salmo Dansa para Heróis e heroínas do crodel, de Januária Cristina Alves

Em sua obra, um dos nossos maiores escritores, o paraibano Ariano Suassuna, faz referência aos cordéis que Leandro popularizou, especialmente “O Testamento do Cachorro” e “O Cavalo que Defecava Dinheiro”, sua inspiração para a criação da obra-prima O auto da compadecida. Ariano contava em suas palestras e aulas o quanto a presença desses cordelistas o encantava e como os textos que eles levavam para as praças e feiras nordestinas foram responsáveis por sua formação. Com esses cantadores, Ariano aprendeu o que ele gostava de definir como sendo a receita de “uma boa história”: “Tudo o que é bom de passar é ruim de contar. E tudo que ruim de passar é bom de contar”, dizia, como se se fosse uma máxima do tal do storytelling (imagine o que ele não diria se lesse essa palavra toda ‘americanizada’!).

Ariano e todos os cordelistas sempre souberam que histórias de dores e dissabores, desde que sejam devidamente bem contadas, e com as mazelas incrivelmente transformadas, rendem uma boa história. E é por isso que elas seguem incólumes, lidas, cantadas, contadas, pelejadas, batalhadas. Os seres humanos anseiam por histórias que contem sobre como a vida pode ser melhor e mais larga do que o pedaço pequeno que nos cabe no dia a dia.

Januária Alves analisa a jornada do herói nos cordéis de seu novo livro

Ilustração de Salmo Dansa para Heróis e heroínas do crodel, de Januária Cristina Alves

Quem lê ou ouve as peripécias de João de Calais ou da Donzela Teodora não duvida que a vida dá muitas voltas e que a nossa vida pode dar as voltas que quisermos, pois estamos no comando. Como bem disse Campbell, o verdadeiro herói sabe que o caminho que vê à sua frente, passo a passo, não é o seu: “O seu próprio caminho você faz com cada passo que dá. É por isso que é o seu caminho”.

   

O projeto desse livro, desde sempre, foi tornar-se uma inspiração para os jovens contemporâneos, fãs das séries e dos games - que são produtos baseados nos princípios da Jornada do Herói –, para que percebam como se dá a construção desse tipo de narrativa, entendendo como elas funcionam, para que também possam construir as suas. Não apenas as histórias que podem contar no papel ou nas suas redes sociais, mas as múltiplas narrativas que compõem sua própria trajetória, na qual poderão identificar os elementos dessa jornada. Compreender de que matéria são feitas essas aventuras é libertador, e é disso que estamos precisando em um mundo em que os algoritmos fazem as escolhas por nós.

O que os nossos heróis cordelistas nos ensinam é que é preciso ter muita coragem e fé para seguir contando histórias, e também, uma pitada de ousadia e criatividade para cruzar essas narrativas com as nossas, para que, dessa forma, sejamos também heróis e heroínas. Que esses cordéis nos mostrem que, ao tomarmos nossas decisões com ética, consciência e solidariedade, estamos traçando essa imensa história coletiva, que nada mais é do que o fio que nos une. Sigamos o fio do cordel como exemplo e motivação, e encontremos juntos a razão de ser e estar aqui, nessa grande feira que é esse mundão caótico pelo qual estamos navegando.  

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JANUÁRIA CRISTINA ALVES é Mestre em Comunicação Social pela ECA/USP, jornalista, educomunicadora, autora de mais de 60 livros infantojuvenis, duas vezes vencedora do Prêmio Jabuti de Literatura Brasileira. É pesquisadora do folclore brasileiro e da cultura popular e autora do Abecedário de personagens do Folclore Brasileiro (Edições SESC/FTD Educação). Também realiza palestras e oficinas para educadores, crianças e jovens, sobre Educação Literária, Educação para as Mídias e Storytelling. 
Para saber mais acesse: www.entrepalavras.com.br

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