Sete autores contam as lições que receberam dos avós

24/07/2020

Que ensinamentos seus avós deixaram para você? Pode ser uma frase, um conselho, um modo de enxergar a vida, a maneira de se relacionar com o mundo... Quem teve a oportunidade de conviver com seus avós tem sempre uma história para contar – e uma lembrança para sentir saudades, ainda que eles continuem por perto. Em comemoração ao Dia dos Avós (26), confira os ensinamentos que sete escritores e ilustradores de livros infanto-juvenis – Heloisa Prieto, Jarid Arraes, Mauricio Negro, Talita Nozomi, Fernando Vilela, Stela Barbieri e Aryane Cararo –  herdaram e aplicam nas suas próprias vidas. E os seus, que lições deixaram? 

 

Heloisa Prieto

Leonor Cabral Prieto, avó de Heloisa Prieto

"No jardim das minhas lembranças estaríamos, minha irmã Renata e eu, brincando com os sete filhotes de cachorro no quintal do fundo da casa. Tarde quente de verão, nossa bisavó Maria Santiago Prieto estaria sentada na poltrona de madeira, calada, serena, observando Toyoko Harada, nossa avó adotiva, nascida no Japão, enquanto ela cuidava de seu amado canteiro de orquídeas.

Nossa mãe, Valdeti, nos traz limonada e bolinhos de chuva. Bisa se aproxima da mesa do jardim para nos contar dos tempos em que era pequenina, na Europa, quando a gripe espanhola levou consigo tantos amigos seus.

‘A Morte sempre caminha ao nosso lado’, ela dizia. E diante de nossos olhares assustados, prosseguia. ‘Não é para ter medo dela. Cada um tem sua hora de ir embora. Do pó viemos, ao pó voltaremos… Ninguém é melhor do que ninguém. Aos olhos da Morte, somos todos iguais. Por isso vivam cada dia da melhor maneira, como se fosse o último. Sempre com humildade e gratidão. Cada dia a mais é um presente que se ganha.’

Sem saber o que dizer, além de concordar com a cabeça, minha irmã e eu iríamos sair da mesa para brincar de bola com os cachorrinhos e, como sempre acontecia, um deles invadiria os preciosos canteiros de Maria San, como a família carinhosamente costumava chamar dona Toyoko Harada.

Ela se enfurecia e nos dava bronca com seu português mesclado de expressões em japonês. Minha irmã, que sempre detestou ouvir reprimendas, optaria pela televisão, mas eu permaneceria no lugar, tentando ouvi-la quando dizia:

‘Heloisa, você é boba demais! Fala demais, brinca demais! Ficar quieta é bom. Ficar calada também é muito bom. Sentar um pouco, olhar para o céu, olhar para o chão’. Assim, desde bem menina, fui aprendendo a arte da meditação. E como eu gostava de ficar olhando as nuvens! Até hoje em dia, tantos anos depois da partida de Maria-san, considero o prazer de ficar quieta em boa companhia como um dos maiores sinais de um grande afeto.

Finalmente, eu ouviria o estalar dos saltos altos, sentiria o perfume de jasmim de minha avó Leonor Cabral Prieto. Elegante, sofisticada, ela era estilista, moderna, apaixonada por viagens, festas, moda e os prazeres das boas mesas. Certamente nos levaria para tomar sorvete e ver as vitrines de suas lojas favoritas. Os cabelos muito crespos e ruivos, os olhos verde profundos, ela determinava:

‘Cada pessoa precisa descobrir o próprio estilo, a própria beleza. A cada um, a sua elegância’.  

Três senhoras longevas, sempre com muita história para me contar. Humildade, gratidão, serenidade, alegria e elegância. Ensinamentos que trouxeram para mim as chaves de suas vidas bem vividas.”

 

Jarid Arraes

Abraão Batista, avô de Jarid Arraes (Foto de Pedro Philippe - Cariri Revista)

“Meu avô é um cordelista e xilogravador muito conhecido em seu meio. Quando eu era criança, sempre lia seus cordéis novos logo quando eram escritos e montados. Muitas das suas xilogravuras estavam pelas paredes da chácara e eu sempre ouvia conversas sobre como pesquisadores da França e de outros países queriam entrevistá-lo, fazer fotos, comprar matrizes das suas xilogravuras. Ele também fundou o Centro de Cultura Popular Mestre Noza e foi lá que passei grande parte da minha infância, entre os artesãos de madeira e as mulheres que trançavam palha. Vi muita gente famosa chegando lá pra comprar. Era um mundo maravilhoso pra mim e por mais que eu conhecesse todas as salas, com todos os tipos de arte que se possa imaginar, eu sempre descobria algo novo ao entrar em uma delas, e mais outra, e mais outra, pra olhar tudo de novo.

O nome do meu avô é Abraão Batista. Ele foi um dos primeiros responsáveis pelo meu interessa pela literatura, especialmente a de cordel, e pela arte no geral. Eu gostava de ouvir o que ele falava pra mim, tudo sempre cheio de lições poéticas e filosofia. Muitas vezes declamava cordéis pra mim, de cabeça, e aquilo era um encanto.

Mas, além da literatura, uma das coisas que aprendi com ele e que carrego até hoje, tentando praticar, é uma lição sobre o medo. Porque eu morria de pavor de andar pela chácara durante a noite; tinha medo de escuro, da grandeza natural do lugar que poderia esconder qualquer coisa ou pessoa. E num dia, quando falei isso para ele, a resposta foi: o medo é do tamanho que se faz.

Poucas semanas depois ganhei um livro infantil que falava sobre medo. Todo ilustrado, parte de uma coleção que também tratava de temas como inveja.

Ele escreveu na dedicatória exatamente o que já tinha me dito. ‘Jarid, o medo é do tamanho que se faz. Vovô Balalão’. E eu sempre lembro disso quando sinto qualquer tipo de medo. Lembro que não deveria aumentá-lo, não deveria dar comida em sua boca, nem deixar que tome o espaço de minha mente.

Agradeço ao meu avô Balalão por ter me deixado duas heranças: a arte e a vontade de pensar profundamente sobre tudo.”

 

Mauricio Negro

Foto de Arsênio Negro, o Seu Nenê, avô de Mauricio Negro

“Meu avô é um tipo inesquecível. Dos netos, fui mais próximo, por diversos motivos. Conversávamos muito, sobre quase tudo, sem jamais se furtar às polêmicas. Ele adorava botar fogo na conversa. Acho que herdei um tanto disso (risos). Contraditório, amoroso, intenso, arrojado, inteligente e, sobretudo, generoso além do crível. Também teve seus tabus, coisas de época, que no entanto o incomodavam. Seu espírito sempre foi inquieto, limite era para ser desafiado, a despeito da prudência e proteção que irradiava. 

Seus pais vieram do Vêneto. Partiram no navio Buenos Aires, Itália quebrada, sonhando em fazer a América (hoje flertamos com o inverso). Se Nova York não se realizou, Santos os acolheu, em 1888. No Brasil criaram nove filhos, dos quais meu nonno foi o caçula. Daí o apelido Nenê, embora se chamasse Arsênio, algo que tardei a descobrir. Pois o Seu Nenê, como todo mundo o conhecia, teve três filhos. E inúmeras vezes me aconselhou a não cometer a mesma bobagem. Eu respondia assim: ‘Mas, nonno, como pode afirmar isso se você próprio teve três e os ama tanto?’, ao que ele respondia: ‘É por isso mesmo, seu cabeça dura!’, rindo com o canto da boca e sob o chapéu oblíquo à la Spencer Tracy. Hoje tenho duas flores e entendo perfeitamente o que ele diz. Sou tão apegado e preocupado quanto ele. Ele tinha e não tinha razão. 

Minhas filhas, Jasmim e Flora, não chegaram a conhecer o bisavô. Por outro lado, dele se sentem quase íntimas. Também pudera, Seu Nenê é memória inspiradora para muita gente, pelo carisma e pelas histórias incríveis que viveu. Teve um ferro-velho, cheio de antiguidades, onde se acumulavam peças ferroviárias, náuticas, sinalizadores, timões de navio, ferramentas e outras maravilhas obsoletas. Também coordenou uma equipe de escafandristas que, vestidos como nas Vinte Mil Léguas Submarinas do Júlio Verne, perscrutavam as profundezas do canal marítimo entre Ubatuba e São Sebastião. Por ali ainda há diversos navios afundados, sob a proteção de correntes traiçoeiras. Tesouro não acharam, mas içaram muita coisa vendida depois aos desmanches, que reciclavam o metal para fazer geradores elétricos. 

Seu Nenê começou a trabalhar muito cedo, como era comum naqueles tempos. Com nove anos, e pernas de pau adaptadas, manobrava automóveis na garagem administrada pelo irmão. Mais do que estacionar, era preciso ser muito rico para ter um carro importado. A tal garagem ficava na Rua Timbiras, no centro velho de São Paulo. E não era apenas uma garagem. Por lá também lavavam os carros. Mais tarde, virou também uma mecânica. Como a elite frequentava o local, era preciso mais. Então, montaram um café. E os artistas e intelectuais mais badalados marcavam ponto. A Garagem Timbiras foi pioneira nisso tudo, antes da própria indústria automotiva nacional. Os contratos eram feitos de boca, imaginem só. Faziam a encomenda no exterior e o veículo chegava de navio. Meu nonno conduzia os cobiçados modelos pela estrada velha de Santos e os entregava à domicílio, chaves em mãos. Lembrando que os carros ainda não tinham transmissão automática. O freio era indispensável. O famoso piloto Chico Land, pioneiro do automobilismo brasileiro e estrela internacional, foi cliente assíduo. Tenho até hoje algumas folhas timbradas com o símbolo de um Timbira. Pensando bem, meu estúdio devia se chamar Garagem Caraíbas!

Outra memória inesquecível do Seu Nenê está relacionada a viagens. Graças à Garagem Timbiras, fez muitos amigos. Um deles foi o filho da diva Guiomar Novaes, idolatrada mundialmente à época. Com Luiz Octavio, acompanhando as turnês da mãe pianista, Seu Nenê frequentava altas rodas. Por exemplo, foram uma vez ambos convidados a jantar com Roberto Rosellini. E Seu Nenê foi mesmerizado pela beleza de Ingrid Bergman. Noutra ocasião, pegaram um voo errado e desembarcaram em Túnis. Na volta, conheceu Henri Charrière, o famoso Papillon, fugitivo da Ilha do Diabo, cuja vida virou filme. Em Nova York, num estabelecimento noturno, foi desafiado na sinuca por um desconhecido. Venceu a partida. E a seguinte, também. O desafiante, então, sugeriu que apostassem. E então o avisaram, discretamente, para recusar o desafio. O oponente era ninguém menos que o gangster Lucky Luciano. 

Essas são só algumas passagens. Há muito mais. Daria filme. E quase deu. Numa leitura dramática feita em casa, o Seu Nenê foi interpretado pelo Gianfrancesco Guarnieri. O filme roteirizado pelo meu primo cineasta jamais saiu, por conta de divergências em família (risos). Chamava-se A vaca no sofá. Podia dar em livro, que ainda não ousei. Mas já prestei uma homenagem carinhosa a ele no livro Por fora, bela viola, no qual misturei o sotaque ítalo-paulistano com o modernismo de Juó Bananére, o sambaliano de Adoniran Barbosa e a ternura desmedida do meu, nosso Seu Nenê. 

 

Talita Nozomi

Foto de Ryoko Kasuya, obaatian de Talita Nozomi

“São tantos os ensinamentos que a minha obaatian me presenteou ao longo da vida que, no ano passado, eu comecei uma lista e hoje já é um livro em rascunho: ‘100 coisas que eu aprendi com a minha vó e não vivo sem’. Talvez seja algo que só faça sentindo para a minha família, mas que a gente já se diverte no grupo do WhatsApp, lembrando das histórias e frases que ela vivia repetindo. 

Algo que eu acredito que foi comum aos 17 netas e netos foi ouvir: ‘Faz direitinho, não pode ser de qualquer jeito’. Tudo que nos propuséssemos a fazer, da mais pequena tarefa doméstica a uma lição da escola, tinha que ser da melhor maneira possível. Uma certa rigidez que quando eu era pequena me assustava, mas que, com a interlocução da minha mãe, entendi: ‘Melhor não fazer algo, do que fazer sem ser de coração!’ E não é que ela está certa?!”

 

Fernando Vilela

Elza Vilela, avó de Fernando Vilela

“Viajava com meus pais no fusquinha azul, DJ 23043, umas três horas, de São Paulo para Itajubá, onde meus avós viviam. Eu adorava quando a estrada larga, reta e cheia de carros ficava estreitinha e começavam as curvas, enquanto subíamos pelas montanhas sentindo o ar fresco do sul de Minas. Com as paisagens de morros, montanhas com vaquinhas, o tempo desaparecia e, de repente, chegávamos na casa da vovó.

O portão de metal rangia ao abrir. Era meio-dia. Eu cruzava correndo o quintal acimentado, claro de doer o olho, quente como o quê, e a pesada porta da casa se abria como um sorriso seguido do abraço macio da vovó Elza com um cheirinho só dela. Em seguida eu mergulhava na sala fresquinha, de móveis de madeira escura impecavelmente encerados e me jogava no sofá cheio de almofadas (Não podia bagunçar por que o vovô ficava bravo). Dali eu sentia os cheiros de café, rosca e pão de queijo que vinham da cozinha. Contrariando o horário do almoço, como num milagre, o lanchinho sempre ficava pronto no minuto que a gente chegava.

Tudo era um êxtase de prazer: pão de queijo no ponto, rosca macia, brôa que dissolvia na boca, goiabada com queijo e um cafezinho com leite da fazenda, sem nata e bastante açúcar. A vovó era tudo aquilo, a casa fresca sempre aberta para nos receber com iguarias feitas artesanalmente para nos matar de prazer. O amor dessa avó foi um grande aprendizado.”

 

Stela Barbieri

Foto de Henedina, avó de Stela Barbieri

“Este é o retrato da avó Henedina que sempre esteve na parede do quarto de minha mãe. Esta vozinha que nunca conheci mora em minhas memória pelas histórias que me contam dela. Ela vivia em minha casa um ano antes de eu nascer e me abraça nas doces recordações que deixou. Bala de coco, música dos pintainhos, rosca com passas e creme de nata, reza que protege contra todas as coisas são presenças desta vozinha querida, sempre atualizadas por minha mãe e irmãos, que fazem com que ela viva nitidamente em mim.

A avó Henedina era delicada, caprichosa, amorosa e estes são valores pra nós! Hoje minha mãe tem 92 anos e outro dia perguntei a ela: 

‘Qual foi a coisa mais importante que você aprendeu na vida?’

Ela respondeu: ‘Amar ao próximo’. 

‘Com quem você aprendeu?’, perguntei 

‘Com sua avó! Convivendo!’

Esta convivência continua, de certo modo, na ausência. No livro Labirinto de Histórias, da Companhia das Letrinhas, de minha autoria em parceria com Fernando Vilela, homenageamos essa querida avó.”

 

Aryane Cararo

Angélica Palmer, avó de Aryane Cararo (Foto de Marcelo Lozanis)

“Quando eu nasci, minha avó Angélica Palmer já morava em nossa casa. Então, fui meio neta, meio filha e recebi dela toda sorte de rígidos princípios morais. Alguns dos valores, que também vejo em minha mãe, vieram dessa senhora descendente de agricultores poloneses, criada na roça, que foi empregada doméstica na cidade grande e sempre ensinou para os filhos e netos a importância de ajudar os mais necessitados. ‘São todos filhos de Deus’, dizia ela, para quem a religiosidade sempre foi muito forte.

A importância do trabalho foi outra de suas preocupações – poucas coisas a deixam mais orgulhosa do que dizer às amigas que todos os netos são ‘trabalhadores e honestos’. Curioso é pensar que a característica em mim que ela mais critica hoje – a de fazer mil coisas ao mesmo tempo e não parar para descansar – é herança dela. Cansei de ouvi-la: ‘É zás-trás, ligeirinho, ligeirinho, sem parar’.

Dona Angélica, que dividiu o quarto comigo na minha infância e adolescência, também me ensinou a dormir com música, ainda que não fossem bem canções de ninar: ‘Moça bonita que está na janela, cheguei aqui pra te pedir perdão, eu só te peço que não me abandone, moreninha ingrata do meu coração. Eu vou embora, vou pra onde a lua vai, a lua vai e volta e eu vou e não volto mais” (Moça Bonita/Praião e Prainha). Hoje quem canta sou eu, para minha filha de 3 anos, e entendo agora minha avó e esse meu gosto por músicas tristes na hora de dar o boa-noite.”

 

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