Para celebrar o imaginário coletivo do cordel

22/11/2018

 

“Eu vou contar uma história

de um Pavão Misterioso

que levantou voo na Grécia

com um rapaz corajoso

raptando uma condessa

filha dum conde orgulhoso”

 

 

É com essa estrofe que se inicia um dos textos de cordel mais famosos do país, o Romance do Pavão Misterioso, publicado pela primeira vez em 1923. Desde então, muitas outras histórias foram criadas por famosos cordelistas e se espalharam por diversas regiões do Brasil. Com tamanho alcance, o cordel foi reconhecido pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) em setembro como patrimônio cultural imaterial brasileiro.

Isso porque compõe um "imaginário coletivo, a memória social e o ponto de vista dos poetas acerca dos acontecimentos vividos ou imaginados", assim como divulgou o Iphan. Foi disseminado por diversos estados, como Paraíba, Pernambuco, Ceará, Maranhão, Pará, Rio Grande do Norte, Alagoas, Sergipe, Bahia, Minas Gerais, Distrito Federal, Rio de Janeiro e São Paulo, levado para muitos cantos principalmente na bagagem dos migrantes.

O cordel recebe influências de diversas matrizes, incluindo a europeia, a africana, a indígena e até a árabe. Ainda se discute a data do surgimento desse gênero literário, mas pesquisadores acreditam que tenha nascido de uma adaptação poética dos romances em prosa portugueses. A partir do século XIX, essas narrativas em versos surgem em terras brasileiras em folhetos e em repentes (cantados por repentistas).

Apesar de alguns poetas definirem a literatura de cordel como gênero literário com três elementos (métrica, rima e oração), há variações mesmo quanto a esses elementos. A sextilha, por exemplo, é a métrica mais utilizada, mas não é a única. O próprio termo "literatura de cordel" não se refere a uma regra clara de como deve ser a composição, mas no seu modo de circulação – edições de baixo custo destinadas ao maior número possível de leitores.

Leia mais: Nas asas do pavão misterioso

Uma pessoa essencial para essa grande disseminação foi Leandro Gomes de Barros, um dos principais poetas da literatura de cordel. Ele não foi o primeiro a imprimir os tais folhetos, como conta o pesquisador Marco Haurélio em Breve história da literatura de cordel, mas foi importante para a "criação de uma atividade editorial regular, com o estabelecimento de um modelo que seria imitado por todos os futuros editores, sejam eles poetas ou não". A grande ideia de Leandro foi publicar os folhetos em "fatias", o que correspondia ao modo de circulação dos folhetins dos jornais da época, ao final do século XIX.

Isso possibilitou com que diversas obras importantes se popularizassem e grandes poetas marcassem a história do cordel no Brasil. Duas obras importantes já no século XX, por exemplo, foram A chegada de Lampião no Inferno, de José Pacheco de Rocha, e Romance do Pavão Misterioso, ora atribuído a José Camelo de Melo Resende, ora a João Melquíades Ferreira da Silva.

A partir da década de 50, então, passam a surgir editoras especializadas no cordel, algumas inclusive sediadas em São Paulo, como é o caso da Prelúdio, que nos anos 70 passa a se chamar Luzeiro. Na década de 80, porém, alguns pesquisadores passam a apontar para o que seria a "morte do cordel", com o falecimento de grandes poetas no final do século XX, como Delarme Monteiro, Manoel D'Almeida Filho, Antônio Eugênio da Silva, Joaquim Batista da Sena e Minelvino Francisco Silva. Eles faziam parte dessa antiga geração, que ao desaparecer deixava um aparente vácuo na tradição. O pesquisador Marco Haurélio discorda dessa visão. Aponta o gênero vivo em diversos formatos, em sua obra publicada em 2010.

Até hoje é bastante utilizado em sala de aula. Segundo José Cláudio Mota Porfiro, na tese Literatura de cordel, educação e formação de consciência crítica, defendida em 1999 na Unicamp, o gênero traz uma "realidade mais latente" aos estudantes. Além de poder ser um recurso pedagógico para as escolas, é "crítico-social na busca da superação do senso comum através do aprimoramento teórico-prático, com certa sintonia ao grupo social dos alunos”.

Métrica

O cordel é essencialmente oral. Não tinha uma métrica própria definida logo no seu surgimento, mas foi aprimorando-se e a adquirindo ao longo do tempo. Diversas métricas já foram utilizadas ao longo da história do cordel. Uma delas era a do verso de quatro sílabas, utilizado na "parcela". Nesse tipo de texto, que acabou caindo em desuso, os versos eram cantados em uma sequência alucinante para confundir o oponente. Mais tarde veio o verso de cinco sílabas, que também garantia o ritmo acelerado que exigia habilidade do cordelista.

Mais antigas, porém, são as composições feitas com estrofes de quatro versos, cada um com sete sílabas. Quando essa estrofe é acrescida de mais dois versos, o que se deu naturalmente, surge a sextilha, utilizada até hoje. É ela a utilizada nesses longos poemas romanceados, como o Romance do Pavão Misterioso. Hoje, é obrigatória em qualquer combate poético e utilizada nos folhetos, cheios de sátiras políticas e sociais. Mas mesmo a sextilha apresenta estilos diversos: aberto, fechado, solto, corrido, desencontrado...

Outras formas ainda foram utilizadas apesar da hegemonia da sextilha. Até mesmo Leandro Gomes de Barros não resistiu à beleza das estrofes de sete versos, cada um com sete sílabas poéticas. Mas o autor que mais as utilizou foi José Pacheco da Rocha, que compôs o famoso poema A chegada do Lampião no inferno. Ainda há quem utilize as oitavas (oito versos de sete sílabas), as décimas (dez versos de sete sílabas), o martelo galopado (dez versos de dez sílabas), o galope à beira mar (versos de onze sílabas), e até a meia quadra (versos de quinze sílabas).

Para ler mais cordéis

Nem sempre é tarefa fácil achar literatura de cordel nas livrarias. Mas algumas instituições têm se esforçado na divulgação de textos importantes desse gênero literário. Além de cordeltecas distribuídas por todo o país (em especial nos estados do Ceará e do Rio de Janeiro), há um acervo vasto disponibilizado de forma digital e gratuita, como da Casa Rui Barbosa, da Academia Brasileira da Literatura de Cordel, do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular, da Fundação Joaquim Nabuco, da Universidade de Poitiers e até no site do Domínio Público.

Em entrevista ao Blog da Letrinhas em junho, o escritor Ronaldo Correia de Britto, que adaptou o Romance do Pavão Misterioso para a Companhia das Letrinhas, deu algumas dicas de obras da literatura de cordel que vale a pena conferir:

1. Proezas de João Grilo, João Ferreira Lima

2. Juvenal e o Dragão, Leandro Gomes de Barros

3. A Guerra de Canudos, João Melchíades Ferreira

4. Serrador e Carneiro, João Martins de Athayde

5. Coco-Verde e Melancia, José Camelo de Melo Resende

6. Carta de um Sertanejo, Manuel Camilo dos Santos

7. A Chegada de Lampião no Inferno, José Pacheco

8. O Homem da Vaca e o Poder da Fortuna, Francisco Sales de Arêda

9. A Peleja de Zé Pretinho com Manoel Riachão, José Costa Leite

10. Vida e Testamento de Cancão de Fogo, Leandro Gomes de Barros

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