Para a criança, coisa absurda tem lógica!

15/03/2017

Por Renata Penzani

 

Pense em uma coisa incrível. Fantástica, excepcional, extraordinária. Do tipo que não existe. Certamente, essa coisa terá lugar na literatura feita para a infância. E digo “para a infância” porque penso que os livros considerados infantis são aqueles que propõem um encontro com a infância das coisas, das pessoas, da sociedade e, principalmente, das certezas antes de elas se tornarem verdades absolutas. Para resumir isso tudo em uma frase: a infância é o tempo do delírio.

Os livros infantis têm muitos atributos e “funções” em potencial, mas talvez o mais interessante seja justamente este de oferecer um descanso da lógica. Se, no mundo adulto, as coisas criadas para ter significado ou cumprir determinados papéis são as que invariavelmente menos sentido têm, na literatura infantil, o caminho é saborosamente inverso: pois são as coisas absurdas que mais parecem fazer sentido. E aí entra um rótulo – sempre eles! – muito interessante: a literatura nonsense, expressão que vem do inglês para definir aquilo é despropositado, sem nexo, maluco.

Como em todas as invenções se procura um pai, é possível atribuir essa tal paternidade a muitos autores, como Lewis Carol ou Edward Lear, que influenciaram toda uma geração de artistas como Lemony Snicket e Edward Gorey. Mas, afinal, não seria toda a literatura infantil nonsense por natureza? Se o rótulo tem algum propósito nos livros adultos, ele perde sua razão de ser nos infantis. Afinal, para que etiquetar somente uma parte dela?

É só pensar nos contos de fada para imediatamente associá-los ao mais completo absurdo, daí o porquê de os textos adultos de teor nonsense se assemelharem tanto às narrativas clássicas.

A maioria dos contos de fada são esquisitice pura – como bem lembrou a Janaina Tokitaka no texto Contos de fadas para mães feministas. “Uma carruagem de abóbora, uma casa feita de doces, a transformação de 11 irmãos em gansos selvagens, o amor entre uma bailarina de papel e um soldadinho de chumbo, uma menina nascida de dentro de uma tulipa”. E os exemplos sobram: um menino que faz crescer sem querer um pé de feijão gigante. 

O que torna a fantasia fascinante é que qualquer regra do mundo real pode ser virada do avesso. Até mesmo as mais exatas: gatos podem dirigir barcos, peixes podem voar e as plantas podem ter cabeça de cachorro, como as Latia Uivaltia de Edward Lear. É uma como uma receita que se segue de cabeça: as quantidades de uma coisa e outra importam pouco ou quase nada: o que precisa é dar sabor.

No livro A psicanálise dos contos de fada, do Bruno Bettelheim (editora Paz e Terra, 2012), há uma explicação interessante para isso: “O real a que os adultos comumente se referem é o externo, é o mundo circundante, enquanto o conto de fadas fala de um mundo bem mais real para as crianças. Não se trata do aqui nem do agora da realidade adulta, mas de um território fora do tempo e do espaço”. Não por acaso os Irmãos Grimm escolheram começar um de seus contos, O rei sapo, falando declaradamente sobre isso: “Nos velhos tempos, quando desejar ainda era de alguma ajuda...”.

Quando comecei a pesquisar literatura infantil, foi um caminho sem volta em parte por conta dessa constatação: se o mundo adulto (dentro e fora dos livros) responsabiliza a falta de sentido como algo nocivo, no da criança ela é celebrada como uma experiência plena da selvageria e ambivalência da natureza humana. 

Daí vem a imensa contribuição emocional da literatura nonsense. Segundo Bettelheim, são precisamente quatro: fantasia, escape, recuperação e consolo. Elementos que se tornam artigos de primeira necessidade na vida adulta, não é mesmo? Principalmente quando os acontecimentos nos atropelam com sua falta de sentido travestida de coerência.

Tolkien disse algo sobre os contos de fada que bem ou mal podem se encaixar a qualquer história que seja construída em cima da fantasia: “Eles não estão evidentemente preocupados com o possível, mas com o desejável”. É isso, né? Ou também isso. A literatura nonsense parece mais um aviso de que a verdadeira vontade de vida não acontece aqui, nisto que vemos e sentimos enquanto vivenciamos o real – mas em uma longínqua e sempre acessível Terra do Nunca.

 

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Renata Penzani é jornalista, pesquisadora do livro para a infância e autora do blog Garimpo Miúdo, onde compartilha achados da literatura infantil e juvenil.

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Ilustração: Marcelo Tolentino 

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