Os muitos enredos do ziriguidum da literatura

19/02/2018

 

Por Silvia Oberg

Ao pensar leitura, literatura e formação de leitores em pleno Carnaval, ao som de marchinhas dançadas e cantadas por crianças de uma escola na esquina de minha casa, surge em minha reflexão uma relação inesperada: que as características de transgressão, de festa dos sentidos, de exercício de imaginação, de distanciamento do rotineiro, de ambiguidade, de ziriguidum (no sentido de folia e brincadeira), próprias das comemorações carnavalescas, aproximam-se de certas características da literatura. Seja para crianças, seja para adultos, a literatura pode ser folia, descoberta, fruição e pode também provocar, incomodar, desestabilizar.

Essas imagens parecem um despropósito? Talvez. Mas como é Carnaval, vou me permitir a extravagância e continuar...

 

Ilustração Marcelo Tolentino

 

Em um mundo regulado pela velocidade, precisão e objetividade, como trabalhar com a formação do leitor e com a literatura, produção marcada pela ambiguidade e subjetividade, que exige tempo e esforço da parte do leitor e que escapa a cadências e coreografias previsíveis? Não há fórmulas mágicas e, nesse samba, entram diferentes atores, ritmos e enredos...

Mas, se não existem garantias ou receitas que possam determinar completamente as relações que a criança e o jovem estabelecerão com a leitura, podemos tomar algumas referências como pontos de partida na empreitada de formação do leitor durante o planejamento literário.

Entre muitas possibilidades, conhecer as leituras “invisíveis”, geralmente ignoradas pela escola e por espaços informais de educação e cultura, pode ser  essencial nesse processo. Considerar a cultura dos jovens leitores, suas preferências reais, inclusive as “inconfessáveis”, pode ser uma etapa valiosa nos projetos para a formação do leitor literário e na criação de uma dinâmica em que todos atuem na ampliação de repertórios de leitura e na construção de vínculos significativos com a literatura.

Sabemos que não basta que as crianças estejam em contato com bons acervos para que se tornem leitores. Se o acesso aos livros e o cuidado na escolha das obras são essenciais, é importante reconhecermos que também não são suficientes, uma vez que a formação de leitores exige todo um enredo de ações bem articuladas. Além de acervos diversificados e de qualidade, espaços de leitura acolhedores e profissionais qualificados são fundamentais, uma vez que de nada adianta ter ao alcance das mãos obras literárias excelentes sem mediadores competentes que, se possível, sejam não apenas leitores, mas leitores apaixonados.

É importante, também, reconhecer a existência de diferenças no grupo com o qual se trabalha. Nem todos se identificarão com a mesma obra, gênero e autor ou que nem sempre aqueles que pertencem à mesma faixa etária ou sala de aula compartilham o mesmo momento de apropriação de leitura e escrita. Para atuarmos nessas situações, existe uma variedade de obras literárias e possibilidades de práticas que poderão compor um “cardápio de leituras” capaz de despertar o desejo/fome de ler.

Essencial é compreender que a leitura, especialmente a literária, é um espaço de liberdade. Não esperar sempre pela convergência de interesses e interpretações, mas aceitar a divergência como possibilidade de enriquecimento e ampliação dos sentidos do que se lê é crucial nesse processo. A literatura tem como marca a plurissignificação, apresenta muitos sentidos e, portanto, oferece espaços para a atuação do leitor na construção de significados. Evidentemente, não se trata de aceitar que qualquer coisa que se diga sobre o texto lido seja procedente, mas sim, o fato de que um mesmo livro possa suscitar diferentes olhares, ser lido a partir de diferentes perspectivas. Ou seja, o leitor lê com sua individualidade (seus aspectos cognitivos, afetivos, sensoriais, imaginativos), inserido em um contexto histórico, social e cultural que também atua sobre a reconstrução de significados que faz na leitura. Sobre essa questão, Leonardo Boff nos lembra que:

“Ler significa reler e compreender, interpretar. Cada um lê com os olhos que tem. E interpreta a partir de onde os pés pisam.

Todo ponto de vista é a vista de um ponto. Para entender como alguém lê, é necessário saber como são seus olhos e qual é sua visão de mundo. Isso faz da leitura sempre uma releitura.

A cabeça pensa a partir de onde os pés pisam. Para compreender, é essencial conhecer o lugar social de quem olha. Vale dizer: como alguém vive, com quem convive, que experiências tem, em que trabalha, que desejos alimenta, como assume os dramas da vida e da morte e que esperanças o animam. Isso faz da compreensão sempre uma interpretação.

Sendo assim, fica evidente que cada leitor é co-autor. Porque cada um lê e relê com os olhos que tem. Porque compreende e interpreta a partir do mundo que habita."(1)

A criação de situações de leitura significativas e diversificadas é um fator igualmente importante. Especialmente no ensino formal, é comum encontrarmos propostas que não reconhecem a leitura literária como ato com valor em si mesmo e que buscam legitimar práticas com a literatura por meio de atividades (estudo da língua, avaliação de compreensão e interpretação de textos, trabalhos interdisciplinares etc.) que, muitas vezes, reduzem o texto literário à mera estratégia para a aprendizagem de outros temas.

Se os espaços formais de educação precisam dar conta de determinados conteúdos e garantir leituras obrigatórias, é possível atuar no sentido de enriquecer esses momentos. Além disso, podemos diversificar as práticas com a literatura com debates, encontros com escritores, ilustradores, editores, ciclos de cinema e literatura, saraus de histórias, poesia e música, rodas de histórias, apresentação de peças teatrais e corais, exposições, oficinas, clubes de leitura, lançamento de livros, palestras, elaboração de blogs, jornais e murais, entre outras possibilidades.

No Brasil, onde convivemos com desigualdades sociais que, se não impedem, dificultam o encontro com os livros, a grande maioria de crianças e jovens faz seus primeiros contatos com a literatura na escola e em espaços informais de educação. Desse modo, retomando a imagem do Carnaval, no gingado da formação de leitores, é fundamental que educadores, professores, bibliotecários e mediadores discutam o ensino da leitura e a ampliação de enredos e tramas que possibilitem o fortalecimento das relações de crianças com a literatura e a cultura.

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Silvia Oberg é graduada em Letras, especialista em literatura infantil e juvenil, doutora em Ciência da Informação e Educação pela Escola de Comunicações e Artes, da Universidade de São Paulo. Trabalhou na Biblioteca Infantojuvenil Monteiro Lobato (SP). Professora, coordenadora de programas de formação de mediadores de leitura, ministra cursos e oficinas de literatura, presta consultoria a editoras. Crítica literária, curadora de prêmios de literatura infantil e juvenil e de coleções de literatura para crianças e jovens e membro do júri de diversos prêmios literários.

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[1] BOFF, L.  A águia e a galinha: uma metáfora da condição humana.  40 ed. Petrópolis: Vozes, 2003.

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