O direito às múltiplas narrativas de mundo

03/01/2019

 

Por Penélope Martins

Quando a dúvida aflige a ponto de me afastar da esperança, reflito se já aprendi a resistir como o camelo atravessando impiedoso deserto carregado de si mesmo e do mundo até me insurgir contra a voz que diz “faça” para proclamar “não quero”. Isso porque se primeiro o espírito deve se transformar em camelo, depois há de se transformar em leão, e ainda aguardar com coragem para uma terceira e final transformação na ternura da infância.[i]

 

Ilustração Marcelo Tolentino

 

Não tenho leitura suficiente para conversar com as pessoas letradas, fui criada por gente simples, todos amadrinhados na função da enxada. Mas havia na família um cantarolar insistente, e as palavras me entravam pelos sete buracos da cabeça, endoidando a máquina de perguntas do pensamento.

Por sorte distinta dos que me criaram, tive chance para livro, papel e caneta. Fui cursar faculdade de Direito, até quis parar no meio e seguir em Letras. No entanto, mais tarde, eu me vi advogada numa pós-graduação em Direito Constitucional que, como diziam outros colegas de profissão, não me serviria para ganhar dinheiro. Porém, naquelas aulas, por culpa de um professor com habilidades de louva-deus, fui obrigada a aceitar a tarefa de apresentar um tipo de seminário sobre um texto de um tal Immanuel Kant, que foi recusado de pronto por toda a turma e que minha ignorância, santa protetora, fez com que eu dissesse em voz alta: “Eu fico com ele”.

E pronto. Bastou as primeiras páginas, eu me senti recompensada pelo curso. E junto de Kant, eu com a lembrança da voz do meu pai contando como a vida dele mudou depois de ler certa frase num para-choque de caminhão. Para terminar, a retomada de um verso da escritora Anaïs Nin, “a vida se expande e se retrai à medida de nossa coragem”.

Pode parecer absurda a mistura, macarrão com feijão, farofa e ovo, ou Kant no para-choque com versos de Anaïs Nin, mas isso é perfeitamente compreensível para quem, assim como eu, entende que a leitura é fome e longa espera por comida, busca em sofreguidão que cava dentro da gente um punhado de significados.

E se eu me fiz advogada para depois ter a coragem de largar carreira, emprego e a comodidade do que foi conquistado para viver de dizer poesia, foi justamente para acolher o espanto da humanidade com palavras. O palavreado que anda na rua, na feira, na rede estendida na varanda e no menino de pés descalços, o palavreado que pensa o justo e reclama seus direitos, indicando mesma possibilidade para os demais no coletivo, uma natural valorização do que se é, enquanto ser humano, tomando direção à concepção de cidadania. (Vale abrir parênteses, afinal, a palavra cidadania tem sido aliada a uma ideia equivocada de patriotismo com viés extremamente excludente quando, em verdade, contempla na diversidade uma possibilidade de harmonia social.)

O direito está na simplicidade rotineira que nos legitima a dizer que uma pessoa qualquer é legal. Essa frase tem propriedades suficientes para pensarmos a relevância de aprender a ler, desde a infância, iluminando o peso das palavras para retirar delas todos os  significados. Muito bem, todo ser humano é legal. É legal, está dentro da lei e não deve ser tratado à margem dela. No entanto, embora todo ser humano seja legal, a distância entre o papel e o fato é um deserto que testa os limites de resistência da imensa maioria de pessoas que vive atravessando desertos sobrecarregados de si e de mundo.

Por conta disso, relembro Mia Couto[ii] e uma de suas personagens que clama por uma chuvinha dentro da prisão, a mesma prisão que já foi boa o letrinhando, dando a ele mais do que a vida além das grades deu. Se pensarmos no número assombroso de gente que é trancafiada no calabouço sem nunca ter tido o direito efetivo de frequentar a escola com regularidade, alimentando-se, vestindo-se e recebendo toda proteção contra violências, faz entender o quanto é importante afirmar que todo ser humano é legal.

As leis devem ter como objetivo principal regulamentar as relações sociais e proteger a vida humana, tornando possível a coexistência e legitimando as particularidades de cada um, garantindo que todos e todas tenham acesso à vida plena e livre. Obviamente, afirmar para toda gente é garantir que não se sobressaia o desequilíbrio da balança, um julgar de acordo com a conveniência. Por isso, é essencial uma ideia de justiça capaz de ocupar o imaginário coletivo alimentando uma utopia de bem comum. Porque lei e justiça não são sinônimos, a primeira é somente uma intenção de alcançar uma concepção da segunda, e a segunda é uma virtude sinônimo de perfeição.

O justo pode ser visto como uma repetição de atos que desejam alcançar a virtude da justiça, a realização da dignidade de toda pessoa humana. E talvez seja essa a mola propulsora para que a ficção invente histórias capazes de reviver convívios para que possam ser vistos e transvistos, proporcionando uma reflexão subjetiva, íntima e reveladora. Ao final, ao falar de virtude, recomeçamos a trilha para entender porque nos juntamos em tribos, clãs, aldeias, vilas, cidades, metrópoles. E somos capazes de chegar à conclusão de que nascemos com fome e com frio e vamos deixar a vida na mesma condição.

Mas como podemos nos “esclarecer” para deixarmos de nos apegar ao que é de si para pensar no todo? O que podemos contar para ajudar a convencer nossos ouvintes que para ser justo é preciso ter generosidade na leitura das múltiplas histórias que compõem nosso mundo?

Em suas fraseações, o poeta Manoel de Barros versou que “o olho vê, a lembrança revê e a imaginação transvê; é preciso transver o mundo”. E transver requer elaborar narrativas apropriadas para criar em nós uma gama de vivências empáticas suficientemente fortalecidas para que se busque a virtude da justiça. A harmonia com nossos semelhantes considera acolher que todos são tão diferentes entre si quanto de nós mesmos e que na pluralidade conseguimos obter uma gama imensa de possibilidades para avançarmos como grupo. Desse pensamento emerge o que conhecemos como direitos humanos, garantias que se estendem por todos os territórios, nacionalidades e culturas, para mantença de vida plena e livre.

A Declaração Universal dos Direitos, que acaba de completar 70 anos de existência, tem servido para afastar violências perpetuadas contra pessoas e grupos, sendo potente instrução inclusive para a formação das leis de todos os países, signatários ou não. Um exemplo: em 2015, depois de denúncias de mulheres ativistas, a Nigéria aprovou uma lei que proibiu a mutilação da genitália feminina.

No Brasil, a Constituição Federal Brasileira, assinada em outubro de 1988, incorporou como preâmbulo, espírito estimulado pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, afirmando Estado laico, exercício dos direitos sociais e individuais, liberdade, igualdade e justiça para uma “sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias".

Essa arquitetura do Direito pode ser considerada romântica, mas imagine o que é ter uma vela acesa para conseguir ler num quarto escuro, ou reconhecer com a vela um caminho até o interruptor para acender uma lâmpada. A existência da lei, embora não seja suficiente para clarear as relações dissolvendo todos os conflitos, funciona como um ponto luminoso que orienta, revela a existência das coisas e questiona seus significados. Se a lei encontra um receptor, alguém que compreenda minimamente como é possível utilizá-la, temos o caminho para o interruptor e depois a chance de se acender a lâmpada...

Conhecer os próprios direitos é tão ou mais importante quanto ter uma lei que nos defenda. A cidadania não é uma condição passiva, ao contrário, é um chamado para que continuemos buscando o ideal de justiça, a melhor forma para ser dita e a garantia de sua execução. E essas noções sobre a justiça são apreendidas também na linguagem cotidiana que reúne saberes e ditados populares, nas histórias que nos são contadas pelos avós, pais e mães, reforçadas na vivência de personagens que passam a integrar nosso imaginário por nos causarem simpatia ou indignação.

O pobre Capitão Gancho teve sua mão mastigada pelo crocodilo Tic-Tac na Terra do Nunca. Todavia é unanimidade que a maldade do Gancho não fez escapar suas vítimas da prancha para o mar, assim como, mesmo incompreendida, é sabido que nenhum senso de justiça tem Rainha de Copas perseguindo Alice no País das Maravilhas. Obviamente, nenhuma criança quer ser comparada ao sem coração Capitão Gancho ou à malvada Rainha de Copas, pois esses personagens geram repúdio àquilo que faz sofrer, que tortura, que é cruel e injusto.

Preste atenção como as crianças pequenas conseguem resolver seus conflitos sem a interferência do julgamento dos adultos. Juntas, elas dividem brinquedos, correm, fazem novas amizades, repartem lanches e brigam, depois logo fazem as pazes, evitando o isolamento, o estar só, o desamparo. Há um desejo comum na infância sobre receber tratamento com respeito, amor, carinho e cuidado. A criança se afirma e permite que a outra criança o faça, porque ela conhece a liberdade. Já o adulto, esse se afasta da criança e da liberdade, condenando a si mesmo e aos outros...

Talvez seja esse o papel da leitura: tornar os leitores aptos a afirmar suas histórias, para o sim e para o não, impedindo o injusto através de uma lente permeável que se constrói com muitas histórias e que segue enriquecida na relação entre o eu e o outro, incorporando processos anteriores e posteriores ao próprio livro, construindo trilhas nas experiências de cada um, mas também se diluindo e se restaurando à medida em que explora caminhos nunca antes percorridos, novas intersecções para o pensamento, a reflexão, o diálogo. Talvez a leitura seja a amálgama capaz de nos integrar em gigante caleidoscópio, cada um como pequeno caquinho de vidro que significa junto dos demais uma forma deslumbrante de cores diversas que “transvê” a beleza do mundo.

 

[i] Assim falou Zaratustra; Friedrich Nietzsche traduzido por Paulo César de Souza. Cia de Bolso.

[ii] A última chuva do prisioneiro, em Contos do nascer da Terra; Mia Couto. Cia das Letras.

 

***

Penélope Martins é advogada, escritora e narradora de histórias, autora de obras como Pinóquio (Panda Books), Minha vida não é cor-de-rosa (Editora do Brasil) e Quintalzinho (editora Bolacha Maria). Como narradora já se apresentou em diversos lugares do Brasil e em Portugal. Mantém um blog para fomentar leitura, o Toda Hora Tem História.

 

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