Milton Hatoum e a literatura na formação de sujeitos

23/07/2021

Convidado especial do quarto dia da Jornada Pedagógica, o escritor Milton Hatoum tomou emprestado da epígrafe do livro Boca do Amazonas: sociedade e cultura em Dalcídio Jurandir, de Willi Bolle, um trecho do texto "Narrar e curar", do filósofo e ensaísta Walter Benjamin, para definir a conexão que ele, Hatoum, tem com a leitura e a literatura. “E assim se coloca a pergunta, se a narração não formaria o clima propício e a condição favorável para várias curas. E mesmo, se não seria toda doença curável, se apenas se deixasse flutuar para bem longe – até a boca do rio – na correnteza da narração.” A citação também resume, de um jeito poético, o tema proposto ao escritor, que falou sobre a literatura na formação de sujeitos, na escola e para além da escola.

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O autor de Dois irmãos revelou ainda outro momento recente, quando seu filho, que conhece as desigualdades sociais no Brasil, o abordou, surpreso, para compartilhar uma frase de Quarto de despejo – Diário de uma favelada, de Carolina Maria de Jesus. “O povo brasileiro só é feliz quando está dormindo”, ela escreveu. “Uma coisa é saber genericamente da situação do país, outra é ler o diário, os sentimentos, o descalabro e toda a angústia expressa pela escritora. Aí, sim, você forma o leitor porque é essa particularidade que interessa”, diz Hatoum.

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“A leitura é um alimento fundamental para o ser humano. Como uma cura, alguma coisa que a gente não pode viver sem. Por isso a magia nessas frases de Benjamin”, disse Hatoum. Ele revisitou sua trajetória de leitor, citando algumas das obras e escritores lidos a partir da adolescência.  “A escola e alguns professores foram fundamentais na minha formação de leitor.” Ginasiano, no Amazonas, já frequentava a Biblioteca Pública de Manaus, num edifício neoclássico do século XIX, construído na época do ciclo da borracha. “Meus pais não eram intelectuais e a minha formação foi na escola. Com Graciliano Ramos, Jorge Amado, Érico Veríssimo, ia conhecendo Brasis diferentes. Lembro-me de ler com avidez os contos de Machado de Assis.”

Por recomendação da professora de francês, que também mostrou a Hatoum a primeira biblioteca particular que ele viu na vida, o escritor leu Um coração simples, do francês Gustave Flaubert, que dá detalhes da vida burguesa ao contar a história de Félicité, trabalhadora doméstica na casa de uma viúva afortunada.

“Entendi, com a leitura, que existia a mesma história de vida e infelicidade e exploração no Brasil”, diz Hatoum. “Muito tempo depois descobri a afinidade de estilo de Flaubert e Graciliano Ramos, que bebeu na fonte em seu esforço da concisão, de dizer com poucas palavras, de dar ênfase ao drama, às descrições breves e orgânicas”, afirma o escritor.

Já vivendo em Brasília, Hatoum lembra da professora Rosalva, que o apresentou a outros autores. “Comecei a ler com mais abertura, porque o colégio tinha aulas de arte, de teatro, de fotografia. Era um laboratório de ensino e pesquisa”. Em São Paulo, cursando arquitetura, Hatoum foi aluno-ouvinte do curso de Letras da USP e continuou no contato com autores, entre americanos, russos e todos os que desejou acessar.

Essa trajetória como leitor foi tão determinante para sua formação como sujeito que ele só publicou o primeiro livro, Relato de um certo oriente, aos 37 anos. “Era uma neurose minha, de acreditar que tinha que ler tais e tais livros antes de escrever qualquer coisa. Lendo, você descobre muitas referências, simbólicas e ocultas, e também a técnica, porque o romance exige técnica”, afirmou o escritor.

O livro eletrônico ou impresso não vai mudar. Só muda a plataforma. Kafka continua sendo Kafka. A linguagem gráfica dos quadrinhos, por exemplo, atrai também a leitura do romance, do mesmo jeito que o leitor do romance que ler os quadrinhos. São linguagens diferentes, que começam a circular, a despertar interesses entre novos leitores.

Milton Hatoum, escritor

Hatoum lançou, a partir de 2017, A noite de espera e Pontos de Fuga, os dois primeiros títulos da trilogia que entrelaça o período da ditadura miliar brasileira aos anos de formação de um grupo de jovens com sonhos de liberdade. O autor reverencia o crítico literário Antônio Cândido, que disse que ler é uma forma de conhecimento da geografia, da história e do comportamento das contradições humanas.

 

“Há evidentemente o prazer da leitura, quando você é agarrado pela linguagem, mas há também o que está na linguagem, que fala dos dramas humanos. Não só dos humanos. Só de citar a cachorra Baleia, de Vidas secas, de Graciliano Ramos, dá para entender a fome, a região do atraso e a relevância da escola”, afirma o escritor. “Nas últimas páginas, Vitória quer ir para a cidade grande porque quer que os filhos estudem. Ela não quer para os filhos a condição quase animalesca da ignorância. Não por acaso, o nome dela é Vitória.”

Veja a íntegra no depoimento de Hatoum no vídeo abaixo:

 

O papel da coordenação pedagógica no currículo de leitura

A coordenação pedagógica de uma escola não é uma central de B.Os – para usar a gíria capturada do repertório policial, com seus boletins de ocorrência–, nem o “corpo de bombeiros”, sempre apagando “incêndios” nas rotinas da escola. Entre outras atribuições essenciais, ela tem papel fundamental na sustentação de ações formativas contínuas dos professores, inclusive no que se refere aos currículos e práticas de leitura.

Essa foi só uma das provocações que vieram a público no quarto dia da Jornada Pedagógica, com as participações da psicóloga e mestre em Educação Thaís Almeida Costa, do Instituto Chapada de Educação e Pesquisa (ICEP) e da mestre em psicologia da Educação Bia Gouveia, do Instituto Avisa Lá. As pesquisadoras e consultoras dividiram a mesa Currículo de leitura e formação de professores - O papel da coordenação pedagógica e da direção.

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“O currículo é um RG da escola, um mapa de intenções. Como materializar esse currículo? É preciso investir na formação de professores como grande recurso tecnológico. Para qualificar as práticas, depende-se do sujeito. Por isso, a formação tem que ser permanente, nunca compensatória, por causa de lacunas ou da formação inicial dos professores, que sempre terá limites. O professor vai se tornando professor dentro da escola”, diz Bia, lembrando que o fato de ocupar outro lugar pode fazer com que a coordenação pedagógica tenha, por consequência, outros pontos de vista, novas perspectivas, capazes de agregar à vivência e ao trabalho do professor. “O coordenador é alguém que abre espaços para o diálogo e para que as redes colaborativas de formação se estabeleçam”, diz.

Falando de redes, Bia citou O fio das missangas, do escritor Mia Couto: “A missanga, todos a veem. Ninguém nota o fio que, em colar vistoso, vai compondo as missangas”. Entre as premissas da gestão pedagógica, Bia relacionou a formação permanente como parte integrante no desenvolvimento profissional, o papel formador da gestão, a homologia de processos – que privilegia a análise da prática pedagógica por meio da resolução dos problemas, com professores críticos e reflexivos– e uma formação articulada ao contexto do trabalho.

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Com citações e indicações de livros inspiradores para professores, coordenadores ou alunos, Bia lembrou até da música Estrangeiro, de Caetano Veloso, em que ele diz, em versos, que o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss detestou a Baía de Guanabara porque, na visão dele, pareceu-lhe uma boca banguela. Na sequência, o cantor admite-se, diante da mesma Baía de Guanabara, “cego de tanto vê-la, de tanto tê-la”.

Com a metáfora, Bia sugere, na prática, que visões, percepções e expertises diferentes são complementares em torno de objetivos comuns na formação dos alunos, e também no que se refere às práticas de leitura. “Essa rede colaborativa é concebida como baliza para ações formativas e como espaços de participação democrática, de relações horizontais e muita parceria.”

A qualidade das práticas só muda na medida em que fazemos pequenos deslocamentos. Nós, que trabalhamos com formação, sabemos que não é possível fazer transformações tão rapidamente. São pequenos passos que precisam ser dados.

Bia Gouveia, gestora

Psicóloga de formação, Thaís Costa se apresentou como “uma pesquisadora curricular e da justiça de currículo, além de ex-professora de literatura infantil, sempre apaixonada por leitura e arte”.  Inclusive por isso, montou um painel de obras de arte, começando pelo quadro Ciranda, de Dijinira da Motta, para destacar a importância do currículo como um elo, que une a todos na escola.  E os gestores, reforçou, precisam estar especialmente alinhados nessa concepção para fazer a ciranda girar.

O direito da leitura precisa ser subjetivado, costurado, por todos os sujeitos da escola.

Thaís Almeida Costa, gestora

Entre as costuras possíveis e necessárias, é preciso, de acordo com a pesquisadora, pensar em ciclos que envolvam a teoria crítica, a formação docente com ação-reflexão-ação, os currículos de leituras, projetos institucionais de leitura e as muitas situações didáticas possíveis. Thais também falou sobre a necessidade de espaços adequados, do acesso a bons livros e de pensar na equipe como uma comunidade, que precisa de tempo para planejar e realizar trabalhos.

Ao abordar diversidade, Thais exibiu, em vídeo, trechos de uma fala da escritora Chimamanda Ngozi Adiche, autora, entre outros, de O perigo de uma história única. Para que o currículo se concretize na escola, a pesquisadora lembrou de como a atenção aos projetos institucionais para formação de um ambiente leitor mostram o compromisso da gestão na escola. “Enquanto gestores e coordenadores, somos modelos de leitores, referência de leitura na escola.”

Como exemplos, ela citou a utilização de um quadro indicando “comportamentos leitores” e falou do projeto Geladeiras literárias, com geladeiras reutilizadas como “pequenas bibliotecas” – repletas de livros, disponibilizadas para que os alunos pudessem acessar o acervo na hora do intervalo das aulas –, das rodas de leituras com professores, com produção de cadernos de memórias, um recurso para fomentar a leitura entre os educadores, e dos murais de leitura e sessões simultâneas de leitura, em que as crianças decidem o que querem ler, e que conseguem uma enorme mobilização da comunidade escolar.

Veja a íntegra da apresentação das pesquisadoras no vídeo abaixo:

 

Comunidade de leitores

Da teoria para a prática, a mesa Escola como comunidade de leitores promoveu o encontro de três educadores de diferentes regiões do Brasil. Todos destacaram a importância do envolvimento das famílias, pais e mães de alunos, no contexto escolar. Coordenadora pedagógica e formadora de professores em São Paulo, Cris Gazotto citou o “ritual” diário da leitura pensado como o horário nobre da escola para falar a importância de mobilizar para o hábito de ler.

De Curitiba, Guilherme Shibata, coordenador da rede de colégios Bom Jesus, que está em cinco estados brasileiros, tem até um canal no Youtube, o Palavrão, tamanho seu apreço por compartilhar ou mediar experiências de leitura. “A leitura tem que ser um valor, sem esquecer de todos os outros níveis de formação que envolve”, diz Shibata. A professora Isis Aquino, gestora pedagógica da Land School, escola bilíngue de Salvador, não abre mão, por exemplo, de apresentar aos pais os livros que os filhos estão lendo. Cris, Isis e Guilherme apresentam várias outras vivências inspiradoras, de evidente potência na prática da leitura na comunidade escolar. Confira no vídeo abaixo:

 

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