Livro é um objeto que faz cócegas nos ouvidos

20/10/2016

Todas as histórias têm um final feliz, uma recompensa no desfecho ou um tesouro escondido na outra ponta do arco-íris? Para a escritora Laura Erber, nem sempre é assim. Ou pelo menos é assim em seu segundo livro voltado ao público infantil, Nadinha de nada.

Artista visual, poeta e professora, a autora traz da infância referências de leitura que influenciaram sua forma de ver o mundo. Em sua cabeceira de menina, guardava obras do artista italiano Bruno Munari (1907-1998), que lançou um novo olhar para a materialidade do livro infantil, um objeto mais cheio de possibilidades do que até então se imaginava. Hoje, ao pensar em Munari, diz se interessar pelo modo como ele se coloca no lugar da criança que descobre o mundo.

“Todos os livros são objetos enfeitiçados, mas, diferentemente dos livros para adultos, os infantis não escondem nem se envergonham do seu poder ancestral de encantamento”, diz Laura, que já expôs suas criações em artes visuais em conceituados espaços brasileiros e europeus.

Autora de O incrível álbum de Picolina, a pulga viajante (editora Peirópolis), em parceria com Maria Cristaldi, ela conta que o livro não deve querer ser mais esperto do que seus leitores, “mas pode mostrar que a leitura é algo misterioso e surpreendente como o primeiro encontro com um objeto que brilha ou com uma palavra que faz cócegas nos ouvidos”.

Em Nadinha de nada, a autora conta a saga de um ratinho para descobrir o que tem dentro de uma mala. Ele tem a mesma curiosidade de Pandora, personagem mitológica que libertou os males do mundo ao abrir uma caixa. Mas o segredo que a mala releva pode ser outro. Ao ilustrar a obra, Laura escolhe uma linguagem minimalista, em que o vazio se torna um elemento reflexivo. Para saber mais sobre a autora e sua criação, leia o bate-papo a seguir.

Blog da Letrinhas – O sentimento de curiosidade do rato se estende e é despertado também no leitor. Foi sua intenção causar essa reação? Em sua infância, você foi uma menina curiosa, tal qual o rato?  

Laura Erber – Sim, a intenção era essa. Acho que ainda sou curiosa e talvez um bocado menina na hora de escrever e desenhar.

Blog da Letrinhas – Cada vez mais surge no mercado editorial artistas visuais que escrevem e ilustram suas próprias obras. O que pensa sobre essa tendência? Que obra é essa em que a palavra e a imagem são tecidas por um mesmo autor?

Laura Erber – Desde criança escrevo histórias que eu mesma ilustro. Aos seis anos de idade, comecei a produzir livrinhos, com capa de cartolina, grampeados. Era um prazer enorme fazer um livro do início ao fim. É claro que a parceria entre escritor e ilustrador pode ser magnífica, mas, quando o escritor e o ilustrador são a mesma pessoa, há um namoro muito especial entre a dimensão visual do texto e a dimensão textual da imagem.

Blog da Letrinhas – Nadinha de nada é uma leitura provocativa em sua estética minimalista, em que o vazio do cenário branco e o vazio da mala, deixam uma porta aberta e convidam o leitor a refletir e a preencher esse espaço. Você acredita que os livros infantis devem provocar essa reflexão e não entregar respostas fáceis? 

Laura Erber – Todos os livros são objetos enfeitiçados, mas, diferentemente dos livros para adultos, os infantis não escondem nem se envergonham do seu poder ancestral de encantamento. Acho que um livro infantil deve produzir curiosidade e apostar na sabedoria das crianças. O livro não pode pretender ser mais esperto do que seus leitores, mas pode mostrar que a leitura é algo misterioso e surpreendente como o primeiro encontro com um objeto que brilha ou com uma palavra que faz cócegas nos ouvidos. Pode mostrar também que uma ideia começa numa imagem e termina numa palavra, e vice-versa, e que o branco da página também faz parte da história. Se as perguntas são boas, as respostas nunca são fáceis, mas podem ser divertidas.

Blog da Letrinhas – Como você caracterizaria a história de Nadinha de nada? Daria para dizer que é uma fábula contemporânea e filosófica?

Laura Erber – Adoraria pensá-lo dessa maneira. Minha ideia era fazer uma proto-história, com uma sequência simples de ações e um personagem simpático. Surgiu então a cena de um ratinho curioso e uma mala trancada. Interessava também desfazer aquela ideia tão difundida entre nós de que, ao final de uma busca, há sempre uma recompensa. Aqui o personagem não encontra nada, se chateia um pouco, mas depois ele se depara com algo um pouco melhor do que nada. A história trata de uma expectativa que atiça a imaginação do rato, mas é seguida de um desapontamento que não mata a curiosidade nem o desejo.  

Blog da Letrinhas – Sobre processo de criação, quais foram suas inspirações e referências para a elaboração de Nadinha de nada

Laura Erber – A motivação imediata foi minha filha caçula, Maria. Quando ela tinha dois anos e já bastante interessada em livros, senti falta de histórias bem simples, com desenhos gostosos para introduzi-la no universo narrativo. Há uma imensidão de livros com “animais da fazenda” ou “animais marinhos”, que estão mais voltados para aquisição de vocabulário, mas não encontrava muitos livros bacanas de “primeira histórias”. Para essa faixa etária, há muitos livros equivocados, complexos ou muito apelativos, como se um livro para crianças pequenas tivesse que ser tudo – um jogo, um brinquedo – menos um livro.

A inspiração vem simultaneamente da poesia e dos livros infantis, há poetas que sabem nos colocar diante dos objetos de um modo inusitado, como se víssemos um vaso, uma pera, ou um par de meias pela primeira vez. Penso aqui em Marianne Moore, Nathalie Quintane, Wallace Stevens e João Cabral de Melo Neto, para citar apenas alguns. Bruno Munari e Max Velthuijs são outras grandes inspirações. Dos contemporâneos, gosto muito de Chris Haughton e da argentina Isol.

Blog da Letrinhas – Você estreou com a poesia e depois migrou para o romance, que lhe rendeu a indicação a um prêmio em 2014. O que serviu de estímulo para iniciar as produções literárias infantis?

Laura Erber – Sempre estive muito ligada na sensibilidade das crianças. O modo como as crianças percebem e verbalizam o mundo é fascinante, elas também nos ensinam muito sobre formas narrativas menos convencionais. Mas é preciso conseguir ouvi-las com ouvidos livres. Uma criança consegue recontar uma aventura épica em cinco minutos. Isso é maravilhoso. Como artista visual, realizei algumas vídeos-instalações que envolviam a participação infantil. Trabalhei numa ilha no Limousin, na França, em um projeto que contou com a colaboração de vinte crianças de 4 a 7 anos. Era um trabalho sobre o sertão, eu pedia que elas inventassem sentidos e histórias para preencher essa palavra enigmática. O resultado foi estupendo, ‘sertão’ podendo ser uma joaninha que vivia no quarto com uma menina de quatro anos e um vilarejo magrebino onde o nome de todas as coisas começava por “s” e terminava em “o”. Quando criança, eu fazia livrinhos artesanais e sempre tive vontade de retomar esse universo. Quando meu filho nasceu, voltei a ler muita literatura infantil. Comprei em sebos todos os livros que haviam marcado minha infância e estavam fora de catálogo. Mas devo dizer que a grande descoberta foi o desenho digital. Quando comecei a desenhar diretamente no computador, surgiram milhares de ideias, figuras e histórias. Estou trabalhando em outros livros no momento. É muito viciante.

Blog da Letrinhas – Como poeta, você tem intenção de iniciar uma produção de poesia para o público infantil?  

Laura Erber – Tenho muita vontade, sim. Mas acho que o texto do Nadinha de nada pode ser pensado numa continuidade à escrita do poema. O esforço de síntese e a busca de uma certa cadência estão presentes nas duas práticas.

Blog da Letrinhas – Em sua infância, você teve contato com a obra de Bruno Munari. Como se deu essa aproximação com o autor? Quais influências ele teve em sua formação e visão de mundo? E qual foi a percepção do autor que mais lhe marcou a memória?

Laura Erber – Meu pai é triestino e me presenteou durante a infância com alguns livrinhos do Munari. Na noite escura (Cosac Naify) foi meu livro predileto durante muito tempo. Mais tarde conheci os ateliês sensoriais desenvolvidos por ele, algo que tem muito a ver com certas experiências artísticas neoconcretas, principalmente da Lygia Clark, embora ela nunca tenha colocado a infância diretamente em foco. Munari entende que um livro é ao mesmo tempo um objeto finito e infinito, que convida o leitor a realizar um percurso de descoberta. O que me interessa em Munari é que ele se coloca no lugar da criança que descobre o mundo e não no lugar do adulto que ensina algo já sabido a alguém que não sabe ainda. 

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