Labirintos de livros, memórias, histórias

10/09/2019

 

Em Labirinto de histórias, lançamento do casal de artistas Stela Barbieri e Fernando Vilela, os protagonistas Manu e Bento, dois irmãos, viajam magicamente por narrativas clássicas infantis e, nesse percurso, encontram diferentes lobos e bruxas, aqueles velhos conhecidos dos tradicionais contos de fadas. No caminho, enquanto vivem uma aventura em busca de uma bruxa chamada Abdula, a dupla se perde (e se encontra) numa divertida construção labiríntica da literatura infantil.

Segundo Stela, artista visual, escritora e educadora, autora dezenas de livros infantis, “todas as histórias, de certo modo, recontam nossa própria história”. “Então acho que os labirintos das histórias se cruzam com os nossos próprios labirintos”, explica. Além de trazer uma mescla de contos clássicos como João e Maria, Os três porquinhos e Chapeuzinho vermelho, a narrativa também dialoga com diversos ilustradores que se consagraram ao dar traço e tinta a essas histórias, como o francês Gustave Doré, o inglês Leonard Leslie Brooke e o italiano Lorenzo Matotti.

Para adentrar esse emaranhado de palavras e imagens, convidamos Stela e Fernando para uma conversa especial, numa espécie de “entrevista cruzada”, em que um tenta desvendar o labirinto criativo do outro – e vice-versa. Confira.

 

***

 

Stela Barbieri – Fernando, quais são os labirintos de onde nascem suas ideias mais potentes?

 

Fernando Vilela – Acho que são aqueles lugares onde a gente não conhece, mas investiga até descobrir e, enfim, encontrar possibilidades de linguagens, invenção. Geralmente as histórias me estimulam a buscar imagens que conversem com elas. E no labirinto a gente acaba se perdendo nessa busca, mas esse se perder é a possibilidade de abrir novos caminhos.

 

Fernando Vilela – E nas histórias que você conta, que você inventa, onde estão os labirintos dentro do seu processo?

 

Stela Barbieri – Olha, dizem que todas as histórias, de certo modo, recontam nossa própria história. A gente se pauta em coisas que já viveu, já imaginou. E sinto que nessa é relação de fricção entre as histórias que a gente lê, ouve, escreve e a nossa própria vida que surge uma faísca de vitalidade. Quando de alguma maneira aquela história faz sentido para nós porque nos causa estranhamento, entusiasmo, ela nos faz perseguir a ideia de alguma maneira, concretizá-la, escrevê-la, desenhá-la. Mas precisa se cruzar com o que nos engaja e, por tanto, com nossa maneira de ser, nossa história de vida. Então acho que os labirintos das histórias se cruzam com os nossos próprios labirintos. Tem um entrelaçamento disso. Daí que surgem modos de narrar e outros componentes imprevistos das histórias. Quando a gente põe as histórias para fora, para o mundo, elas não são mais a gente, elas já são sujeitos da nossa experiência. E esses labirintos vão se revelando e vamos por caminhos de risco, sem saber aonde vai dar.

 

Fernando Vilela – No livro Labirinto de histórias, onde existe um encontro e onde existe um desencontro?

 

Stela Barbieri – Acho que no Labirinto de histórias existe um encontro de conexão entre os personagens. Por exemplo, uma conexão entre os lobos. O lobo da Chapeuzinho vermelho é um lobo ardiloso, que quer enganar a menina. O lobo de Os três porquinhos usa sua força e, com um sopro, derruba todas as casas. Na nossa vida, esses personagens também têm uma relação com coisas que a gente já viveu e experimentou.

 

Stela Barbieri – Nessa história você vai fazendo um casamento entre várias linguagens, vários tempos e várias expressões. Como você fez essas escolhas?

 

Fernando Vilela – A gente é muito encantado com o livro ilustrado, a história dele é também de formas de ilustrar uma mesma história. Então, nesse livro, a história de Os três porquinhos, que já foi muito ilustrada, tem também uma versão clássica ilustrada pelo Leslie Broooke, um ilustrador inglês. O João e Maria também tem muitas versões, e o interessante dessa narrativa foi a possibilidade de construir esses personagens já tão ilustrados e tão contados com a intenção de criar uma conversa de linguagem entre o trabalho desses ilustradores, que, com sua forma de desenhar, pintar, fazer gravuras, acabam trazendo climas para a história, construindo personagens de maneiras encantadoras e específicas. Então se apropriar desses estilos e expressões dentro do Labirinto de histórias foi um dos jogos que a gente tentou fazer que trouxe um diálogo desse livro com outros e por meio dessas histórias, contadas de maneiras diferentes pela imagem...

 

Stela Barbieri – E tem um entrelaçamento de tempos também, porque esses ilustradores têm uma marca específica a ver com uma época, com aquilo que estava sendo feito como arte, com o que se tinha de tecnologia e os valores de um livro ilustrado. Acho bonito ver esse entrelaçamento de aspectos históricos do livro ilustrado, as ilustrações e dos modos de contar...

 

Fernando Vilela – Sem dúvida. O Gustave Doré ilustra com xilogravura, os livros eram impressos com gravuras. Então a própria linguagem escolhida tem um sentido numa época e não tem em outra. Agora, por outro lado, você tem o Lorenzo Mattotti, que é um quadrinista e trabalha com nanquim num trabalho muito direto, muito expressivo, e cria nas imagens uma versão sombria da história de João e Maria. Então, quando a gente se apropria dessa imagem dele e a traz para o nosso labirinto, acaba sendo também um labirinto de livros, não só de histórias. A gente acaba se perdendo e se encontrando, como se esses livros fossem salas dentro de um labirinto. Quando lá entramos, nos transformamos na linguagem dessas salas. É um labirinto de linguagem também.

 

Stela Barbieri – O labirinto acaba num lugar cheio de escadas e portas. Que portas você ainda não abriu e gostaria de abrir?

 

Fernando Vilela – A gente sempre está se deparando com portas visíveis e invisíveis na nossa vida. Nem sempre a gente tem coragem de abrir algumas, e há portas que a gente não sabe o que vai estar dentro delas ou aonde vão nos levar. Então, quando você pergunta isso, acho que são portas que possam me libertar mais daqueles hábitos e daqueles lugares que eu já estou acostumado e já sei como funcionam. O que eu quero é abrir portas que me levem para outros espaços e que eu aprenda a me relacionar com eles. Portas para coisas novas, que eu deseje, que eu não sei também o que possa estar do outro lado.

 

Fernando Vilela – Quais seriam as construções labirínticas que te encantariam habitar? Se você pudesse inventar um labirinto, como ele seria?

 

Stela Barbieri – Seria um outro tempo de labirinto. Se eu pudesse inventar um labirinto para povoar e para construir, eu jogaria fora o relógio. Seria um tempo da existência, da experiência, daquilo que move mesmo. Não seria um labirinto de uma área do conhecimento, seria um labirinto de trânsitos, navegando por aquilo, sustentado aquilo num mergulho que me atravessa e me chama naquele momento. Os labirintos são um pouco isso: a pessoa vai tateando por onde ela sente que deve ir, porque não tem um mapa do labirinto. Às vezes, a gente entra em labirintos prescritos dos compromissos que estamos assumindo. A gente quem faz essas escolhas, não somos vítimas delas. Mas a gente se enreda em situações que nos afastam daquilo que a gente está procurando. A história fala um pouco disso. Eles estão procurando a Bruxa Abdula, mas vão entrando em uma outra história... E é a cabeça deles que vai conduzindo isso, é simbólico nesse sentido. A gente tem esse pensamento indomável, e ele nos guia para as coisas, quando você vê, já se enredou numa outra arapuca que você mesmo criou para você. E o que eu sinto é que, se a gente pudesse dedicar mais tempo a cada um desses labirintos internos, seria muito rico. Jogar fora o relógio não significa ter um tempo lento, só, também tem um tempo rápido, mas viver outros tempos. Poder ficar mais imerso aqui. O sol vai embora, o outro dia chega, tem ritmos no planeta que nos convidam a dormir ou acordar. Que a gente possa transgredir um pouco aquilo que nos mobiliza.

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