Joias do catálogo: ‘Guilherme Augusto Araújo Fernandes’, de Mem Fox e Julie Vivas

10/12/2021

Por Guilherme Semionato

 

Além do extraordinário A velhinha que dava nome às coisas (que também faz parte desta série), há mais um livro arrebatador no catálogo da Brinque-Book, uma obra-prima profundamente humanista. Se existe unanimidade na literatura que crianças leem, seu nome é Guilherme Augusto Araújo Fernandes. Aliás, o nome completo de um personagem na capa é um bom prenúncio; é como se o livro dissesse: eu estou vivo.

No livro infantil Guilherme Augusto Araújo Fernandes, o personagem brinca de se balançar em um galho

 

Guilherme é vizinho de um asilo de idosos e adora a companhia das pessoas que moram lá. Todas são marcantes, mas o menino tem uma ligação especial com dona Antônia, que também tem um nome comprido como o dele. Quando escuta seus pais dizerem que ela está perdendo a memória, ele sai perguntando para todo mundo o que é uma memória. Do pai, Guilherme recebe uma resposta simples: “É algo de que você se lembre.” Já dos seus amigos no asilo, Guilherme ganha uma porção de respostas misteriosas e poéticas: memória é algo quentinho, é uma coisa antiga, é algo que faz você chorar, é algo que faz você rir, é uma coisa preciosa como ouro.

Memória é algo diferente para cada personagem, um símbolo pungente dessa variedade de percepções que as pessoas têm sobre suas vidas e experiências. Guilherme transforma essas respostas alegóricas em objetos, formando uma coleção de memórias para Antônia que têm muito dele mesmo. O menino, é claro, pensa em termos práticos. Ao procurar uma coisa “preciosa como ouro”, ele se lembra logo da sua bola de futebol, por isso ela entra na coleção. Ao menos naquele momento, a bola não é uma memória para Guilherme, que tem os dois pés fincados no presente. Só dali a muitos anos a bola será um objeto que guarda uma memória afetiva para ele, mas a bola já é uma memória para Antônia, já tem uma carga simbólica. Os objetos de Guilherme são ressignificados por ela; eles contam a história de quem o menino é e ajudam Antônia a contar sua própria história.

Deixa o nosso coração cheio acompanhar a diligência de Guilherme para cumprir a tarefa a que se propõe, a alegria de um trabalho bem-feito e a recompensa pela vitória. Para Guilherme, ajudar sua amiga é uma questão de honra. Ao contrário de seus pais — que têm pena de Antônia e se mostram resignados à situação —, Guilherme não perde a esperança e vai encontrar uma saída. Neste livro, a celebração da inocência das crianças nada tem de sentimentalismo, porque algo forte e incrível é construído a partir da candura de Guilherme, que é esse encontro de almas entre ele e Antônia: duas mentes florescendo juntas, partilhando experiências e objetos, trazendo à tona sentimentos e memórias.

Capa do livro Guilherme Augusto Araújo Fernandes, de Mem Fox, sobre a amizade entre uma idosa e uma criança e o poder das memórias

Capa do livro da Brinque-Book que trata sobre memória e o poder da amizade. Leia +

 

Uma história em três atos

A maestria de Mem Fox é evidenciada no lirismo do texto e no uso de repetições à perfeição. A história se organiza, com clareza e elegância, em três atos: a apresentação dos personagens e do conflito (início), o esforço de Guilherme para descobrir o que são memórias e, então, encontrá-las (meio) e as memórias recuperadas de Antônia (fim). As ilustrações jubilosas e bem-humoradas (saias levantadas, umbigos à mostra...) de Julie Vivas, com um talento marcante para retratar personagens em movimento, se mesclam ao texto para criar uma experiência, como dizer, transcendental.

Transcendental mesmo, porque o terceiro ato deste livro é sublime e divino. Ao mesmo tempo, transcendental talvez não seja a melhor palavra, porque a jornada, a ideia, de Guilherme não transcende a natureza física das coisas: é a própria mágica da vida cotidiana, do amor, da amizade, da solidariedade, do esforço de compreensão. E não é divino: é próprio do ser humano; nosso potencial para a grandeza é plenamente realizado quando não damos as costas a alguém, quando puxamos alguém para cima.

E parece mesmo que o livro se acende para acompanhar esse surto de vida de dona Antônia. Guilherme a presenteia com uma medalha que ele ganhou do avô (o livro dá a entender que ele já morreu, porque é uma lembrança triste para o menino); ao segurá-la, Antônia se lembra do irmão, que partiu para a guerra e jamais retornou. E isso pode ser muito mais do que uma lembrança recuperada, isso pode ser outro adeus, ou o último adeus, a alguém que se foi (e mesmo o próprio Guilherme pode ter aproveitado para se despedir do avô naquele instante). Mas a emoção vem mesmo quando Antônia segura a bola de futebol e se lembra do dia em que conheceu Guilherme, a razão de ser de tudo aquilo, a razão de ser do livro. Guilherme, o próprio título do livro.

No livro infantil Guilherme Augusto Araújo Fernandes, o menino dá sua bola à dona Antônia

 

Uma criança eterna

Guilherme Augusto Araújo Fernandes é o grande clássico de Mem Fox, uma história amada na Austrália e nos Estados Unidos, e um dos livros estrangeiros mais queridos nas escolas brasileiras. Em um texto publicado em seu site, a autora conta um pouco sobre os bastidores da obra. Tudo começou com as visitas que fazia a seu avô numa casa de repouso. Ele morreu aos 96 anos (por isso Antônia tem essa idade), perfeitamente lúcido, mas não havia crianças por lá. Crianças e idosos se dão tremendamente bem, diz ela, e não há motivo para que não fiquem juntos; por isso ela queria escrever um livro que aproximasse essas duas pontas da vida: infância e velhice.

O título original (Wilfrid Gordon McDonald Partridge) — além de fazer referência ao nome do avô da escritora, Wilfrid Partridge — corresponde ao nome exato do pai de Mem. (Ela conta que o pai ficou muito feliz quando o livro foi publicado, porque agora ele tinha um número de ISBN.) Vários elementos da história vieram de suas visitas à casa de repouso: os velhinhos são uma mistura dos companheiros do avô e de amigos da autora, por exemplo. E boa parte das memórias de Antônia vêm da vida de Mem e de pessoas próximas a ela.

Não é novidade que escritores colocam pedacinhos de suas vidas nos livros que escrevem. A ficção permite a cada leitor viver as histórias pelo que elas são, mas é inegável que uma obra literária ganha muitos sentidos, contornos e cores quando sabemos de que forma aquela arte bebeu na fonte da vida. E talvez ainda mais quando descobrimos que a danada da vida imitou a arte. Pois quis o destino que, muitos anos depois, o pai da escritora, o Guilherme (Wilfrid) do título, tivesse Alzheimer. E por acaso dá para acreditar que esse menino ilustre — a chave para que outra pessoa se redescobrisse, alguém que ajudou uma amiga a recuperar a própria vida — um dia acordaria sem saber o próprio nome? Não dá.

O livro — escrito, editado, reimpresso, reeditado e traduzido (por Gilda de Aquino) — é imutável e, ao mesmo tempo, é tudo menos imutável. Um outro livro surge toda vez que uma obra literária é ressignificada (como Guilherme faz com as definições de “memória” e como Antônia faz com os objetos), toda vez que uma história ganha vida dentro de cada leitor. Então, quando eu li o texto biográfico de Mem Fox, fiquei meio angustiado de imaginar esse rapazinho crescido, envelhecido e desmemoriado. É triste que seja assim, porque eu adoro meu xará — ele é uma das minhas crianças preferidas — e quero que ele continue do jeito que é, jovem para sempre. Mas, veja bem, porque eu sou leitor deste livro e porque amo este livro, cabe a mim deixar que ele cresça, e eu não vou deixar. Por mim, Guilherme vai zanzar eternamente naquela casa de repouso, acendendo o coração de quem estiver pelo caminho.

 

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Guilherme Semionato é formado em Comunicação Social pela UFRJ e tem especialização em Literatura Infantojuvenil pela UFF. Em 2020, publicou seus primeiros cinco textos, dois deles no Brasil: Um belo dia... (Editora do Brasil) e Nossa bicicleta (Edições SM), que recebeu o Prêmio Barco a Vapor e o Selo Altamente Recomendável da FNLIJ. Além disso, traduziu e recomendou Rã e Sapo são amigos (Companhia das Letrinhas) para publicação no Brasil.

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