Folclore brasileiro: lendas menos conhecidas para descobrir e contar

05/08/2022

Quando alguém fala em folclore brasileiro, quais lendas e personagens vêm à sua cabeça? Em geral, o Saci costuma encabeçar a lista, seguido por Iara, Mula-sem-cabeça, Curupira, Negrinho do pastoreio, Cuca, Boitatá, Boi-bumbá - com variações, claro, e não necessariamente nessa ordem. No entanto, há incontáveis histórias e personagens menos conhecidos no nosso folclore que também encantam e aterrorizam há gerações, compondo a nossa tradição oral e a matéria simbólica que nos formou como povo.

O Unhudo é um personagem menos conhecido do folclore brasileiro que aparece no livro

O Unhudo, na versão da autora Silvana Rando

São narrativas de origem indígena, africana e portuguesa, muitas vezes sobrepostas, que também acumulam as características das regiões onde surgiram. É o caso das inúmeras lendas protagonizadas por animais, como a da onça e do veado, e de criaturas como o Unhudo e o Caboclo d'Água, mais contadas no interior de São Paulo e nos locais cortados pelo Rio São Francisco, respectivamente.

“Eu sempre falo que o folclore, infelizmente, ainda parece restrito a meia dúzia de personagens e ao mês de agosto. Há poucos registros dos personagens menos conhecidos, e essa foi uma das razões pelas quais eu incluí personagens muito pouco conhecidos no Abecedário, para não deixar essas histórias morrerem nem se perderem”, comenta a escritora e pesquisadora Januária Cristina Alves, autora de Heróis e heroínas do cordel (Letrinhas, 2021) e do Abecedário de personagens do folclore brasileiro (FTD, 2017).

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As lendas folclóricas menos conhecidas nos livros

Lançada pela Brinque-Book, A festa da onça é mais um exemplo dessas histórias, contada aqui em versos rimados, que lembra o estilo do cordel. Escrito pelo autor maranhense Wilson Marques e ilustrado por Kássia Borges, que é artista plástica e professora universitária, o livro mostra um coelho muito astuto que, quando convidado para a festa de uma onça que pretendia comê-lo, percebe a armadilha e convida uma multidão de animais para ir à festa com ele. As ilustrações de Kássia, que é do povo Karajá, completam a narrativa com cores vivas e traços orgânicos que remetem à arte indígena.

Capa do livro

Um coelho dá um jeito muito esperto de não
virar janta de onça neste lançamento da Brinque

Como A festa da onça, os livros infantis e infantojuvenis são ótimas fontes dessas narrativas do folclore que não são tão populares.

Com frequência, elas são reunidas em coletâneas, como a coleção de Histórias à brasileira, de Ana Maria Machado, Viagem pelo Brasil em 52 histórias e Qual é o seu norte?, de Silvana Salerno, e Nove monstros perigosos, poderosos, fabulosos do Brasil, de Flávio de Souza. Vamos conhecer algumas delas?

 

1. O veado e a onça

Um veado decidiu construir uma casa e, depois de achar o lugar ideal, começou a preparar o terreno. Quando ele foi pra casa dormir, uma onça, que também queria uma casa, encontrou o terreno limpinho e preparou estacas para a fundação. Assim, se alternando no trabalho dia e noite sem nunca se encontrar, os dois construíram juntos a casa. Quando descobriram, a onça sugeriu que morassem juntos, o que pareceu arriscadíssimo para veado. Ainda assim, concordaram em dividir o teto. Por fim, o veado também dá um jeito muito esperto de não virar janta de onça!

De origem indígena, esta é uma das Histórias à brasileira (vol. 1), em que Ana Maria Machado reconta narrativas que ouviu da família durante a infância. Com algumas variações e o nome de “A onça e o veado”, integra também a Viagem pelo Brasil em 52 histórias, de Silvana Salerno.

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2. O macaco e o rabo

Depois de alertar uma cutia sobre o perigo que ela corria ao deixar o rabo no meio da estrada, um macaco não percebe que seu próprio rabo estava no caminho de um carro de boi. De origem africana e reunido em Viagem pelo Brasil em 52 histórias, este conto acumulativo desenrola a saga desse macaco para recuperar seu rabo que, além de ser cortado, é roubado por um gato.

Também vem daí o ditado que diz que macaco não olha o próprio rabo, aludindo a pessoas que se ocupam mais da vida dos outros que da sua própria.

 

3. O Unhudo

Esta criatura é uma espécie de zumbi que, depois de morrer, não foi aceito no céu nem no inferno por ter cometido maldades terríveis e passou a vagar pela Terra com seus cabelos e unhas enormes – daí o nome. Muito conhecido principalmente no Sul e no Sudeste, ele também é chamado de Corpo Seco e apareceu com esse nome na série "Cidade invisível", da Netflix.

De origem ibérica, é um dos personagens de Salvos por um fio (Escarlate, 2021), da autora Silvana Salerno, que é do interior de São Paulo e ouvia a história quando era criança no sítio dos avós.

Capa do livro

 

4. A lenda da bacaba

No extremo norte do Brasil, vivia um grupo que preferia não guerrear com outros povos, e isso era possível porque Catamã, uma entidade do mal, ficou presa por muitos anos, mas se libertou, causando fome e doença. Bacaba, filho do chefe do grupo, seria o único capaz de acabar com esse espírito. Certa noite, Catamã matou a mãe de Bacaba, que lutou contra ele por dois dias e duas noites. O jovem acabou com o monstro, mas também perdeu a vida. Depois de duas semanas, no local onde Bacaba e sua mãe foram enterrados, havia uma palmeira com folhas em forma de lança. Seu caule foi usado para fazer arcos e lanças, e as frutinhas, vinho.

Esta lenda indígena do Amapá conta como surgiu a bacaba, palmeira que dá um fruto oleoso do qual se faz um tipo de vinho, e é contada em Viagem pelo Brasil em 52 histórias.

 

5. O caboclo d’água

Ele é um gigante aquático de cabelos compridos e pretos que vive na parte mais funda do Rio São Francisco. É um protetor dos peixes e do rio, que ataca, arrasta para o fundo e engole embarcações, aterrorizando pescadores que pescam sem necessidade.

É uma das nove criaturas das lendas adaptadas por Flávio de Souza em Nove monstros perigosos, poderosos, fabulosos do Brasil.

 

Outras formas de contar as narrativas folclóricas menos conhecidas 

Januária explica que, apesar de muitas vezes não estarem registradas em livros, essas histórias ainda circulam, em especial em cidades pequenas, em todas as regiões do país. “Por meio das cantigas, das peças de teatro, da comida, que também fazem parte do folclore. Tudo isso ajuda muito a contar essas narrativas de outras maneiras e a mantê-las vivas”, diz a pesquisadora. “E é fundamental continuar contando e recontando essas histórias, porque elas guardam em si o jeito de ser de cada lugar, de cada região.” 

Para a escritora, as narrativas menos conhecidas também têm grande potencial de entretenimento e experimentação para ser produzidas em diversas linguagens, como a TV e o cinema, que alcançam um público mais amplo. “Há um universo do nosso folclore a ser descoberto. Se privilegiou muito, com a globalização, histórias americanas e europeias, e se deixou de lado o que é nosso. Eu penso que é preciso um esforço de produção cultural com os nossos mitos e personagens, para apresentar e reapresentar ao povo brasileiro essas outras narrativas, que são lindas, incríveis, únicas.” 

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