Férias de verão no Cine Jangada

23/08/2017

 

Por Flavio de Souza

Com certeza absoluta os melhores momentos da minha infância se passaram em Itanhaém, cidade do litoral sul de São Paulo, que fica entre Peruíbe e Mongaguá. Era lá que minha família – com exceção do meu pai, que ficava em São Paulo, trabalhando, e descia a serra toda sexta de noite – passava todo o verão, retornando só na segunda-feira após o Carnaval.

 

 

Nesta foto estão, da esquerda para a direita: Alicinha, Rosana, eu, Raquel e Eni, quatro primas. Minha irmã Lia não está ali porque provavelmente está na nossa casa, preparando-se para o passeio vespertino. Fosse matutino, estaria todo mundo em trajes de banho.

Estamos prontos para ir de trenzinho – dois vagões com rodas puxados por um tipo de trator – para o centro, onde ficava o lugar mais importante da minha vida: o cinema. Para as minhas primas e minha irmã caçula, esse programa era opcional. Para mim, era religioso: eu tinha um encontro com os deuses cinematográficos absolutamente todo dia, de segunda a domingo.

O caso é que todo dia passava um filme inédito. E na matinê passava o mesmo filme que tinha passado na noite anterior, que geralmente era proibido para menores de 14 ou 18 anos. E na tarde seguinte, era liberado para quem quisesse comprar ingresso e entrar.

Essas cerimônias aconteceram nos anos 60, e foi numa dessas matinês que eu vi Os pássaros e Marnie, do Hitchcock, e os primeiros filmes do James Bond e os faroestes italianos, todos proibidos para menores, e alguns dos mais inesquecíveis, por motivos diferentes.

Mas o mais aguardado foi Doutor Jivago, porque eu tinha o LP com a trilha sonora muito antes desta noite incrível em que vi e me encantei e me decepcionei na mesma medida porque me surpreendeu e não correspondeu ao filme que fui inventando na minha cabeça nas centenas e centenas de vezes – literalmente – em que escutei o LP.

Foi por não poder entrar para ver esses filmes em São Paulo – nos longos meses que separavam, com exceção de alguns dias de julho, o mundo bizarro e o paraíso, ou seja, as férias de verão – que eu li uma pilha de livros, incluindo o já citado Doutor Jivago, de Boris Pasternak, Histórias Extraordinárias, de Edgar Allan Poe, O colecionador, de John Fowles, Moscou contra 007, de Ian Fleming, e Macunaíma, de Mário de Andrade – aos trancos e barrancos, claro, mas maravilhado.

Mais tarde eu passei a fazer parte da turma dos que acham que o-livro-é-muito-melhor-que-o-filme, mas durante vários anos, várias férias, várias tardes do fim da minha infância eu viajei numa poltrona do Cine Jangada e nas páginas cheias de letras.

***

Flavio de Souza é ator, escritor e roteirista. Pela Companhia das Letrinhas, ele já publicou Antes e depois (2015), Nove Chapeuzinhos (2007), Que história é essa? 3 (2009) e O livro do ator (2001), entre outros.

 

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