Do Capão para a escola: leitura obrigatória

21/05/2019

 

“60% dos jovens de periferia sem antecedentes criminais já sofreram violência policial. A cada 4 pessoas mortas pela polícia, 3 são negras. Nas universidades brasileiras apenas 2% dos alunos são negros. A cada 4 horas, um jovem negro morre violentamente em São Paulo. Aqui quem fala é Primo Preto, mais um sobrevivente.” Apesar de terem sido escritas em meados dos anos 90, essas palavras não parecem indicar uma realidade distante, soam como atuais. Registradas na terceira faixa do álbum Sobrevivendo no inferno, de Racionais MC's, Capítulo 4, versículo 3, grifam o teor do disco que surge como expressão da periferia e expõem a problemática de jovens que tentam fugir das estatísticas. Integram a coletânea que é marco na trajetória do grupo e na música nacional.

Acauam Silvério de Oliveira, professor de literatura brasileira da Universidade de Pernambuco que assina o prefácio da edição feita pela Companhia das Letras, explica o impacto da obra que vendeu 1,5 milhão de cópias, "atingindo todos os estratos sociais, de manos a playboys". Referenciando a pesquisa do sociólogo Tiaraju D'Andrea, esclarece: "Mais do que simplesmente representar o cotidiano periférico em crônicas poderosas, a obra dos Racionais ajudou a fundar uma nova subjetividade, criando condições para a emergência do que ele [D'Andrea] define como 'sujeito periférico': o morador da periferia que assume sua condição, tem orgulho desse lugar e age politicamente a partir dele".

 

Imagem retirada do Instagram @dicionariocapao

 

A obra é grandiosa e, para Acauam, uma das poucas vezes em que "a realidade brasileira foi analisada e representada com um olhar tão complexo, considerando-se inclusive as instâncias discursivas mais consagradas, como a academia e a literatura". Em maio de 2018, uma das maiores universidades do país, então, anuncia a lista de leituras obrigatórias para o vestibular de 2020. Sobrevivendo no inferno estava lá, escolhido para ser lido e ouvido pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). “Enquanto a letra é cantada, estão acontecendo muitos outros movimentos no conjunto sonoro de cada faixa, com retalhos de sons da cidade, da violência, músicas, outras vozes, todo um arranjo de sons e sentidos”, desenvolve o poeta e advogado Tarso de Melo, “que Sobrevivendo no inferno não seja apenas ‘leitura obrigatória’, mas sim ‘audição obrigatória’, porque tudo nesse disco foi meticulosamente pensado para entrar pelos ouvidos!”.

Em 2011, os historiadores da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) Bruno Viveiros Martins e Ligia Beatriz de Paula Germano elaboraram uma aula sobre o tema – Racionais MCs: um olhar sobre o Brasil e suas periferias. No ano passado, as professoras Suzane Jardim e Tayna Célia de Almeida Rosa também pensaram em um plano de aula sobre o disco. Além desses materiais que podem inspirar diferentes abordagens, listamos a seguir possibilidades de leitura da obra.

 

Racismo, abolicionismo e direitos civis

“Foi com Sobrevivendo no inferno que a juventude negra e periférica se formou. Por causa desse disco muita gente se graduou em autoestima e não entrou para a faculdade do crime.” (Sérgio Vaz, poeta e um dos criadores do Sarau da Cooperifa)

Sobrevivendo no inferno modifica o termo "periferia", que passa a designar não apenas "pobreza e violência", como desenvolve Acauam, mas também "cultura e potência". Isso confere autoestima à população das comunidades e enfraquece uma visão determinista sobre a criminalidade ser a única saída. É importante olhar para a produção dos Racionais como um todo, pensando no que havia antes do CD ser lançado, não somente nos impactos que ele teve. Por que essa população não tinha perspectivas positivas em relação a própria potência? De que forma isso se relaciona com o passado? Como um regime escravocrata que durou cerca de 400 anos pode ser comparado com a desigualdade social de hoje? 

 

 

"Em 1997, o Brasil era então governado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso e sua política de privatização de empresas públicas e estatais. Sua política neoliberal andava de mãos dadas com a premissa ideológica da democracia racial, que buscava afirmar a inexistência do racismo, negando a própria paisagem social que escancarava que a democracia racial ainda não havia chegado para os negros [...]", pontua a professora de história Luanda Julião em artigo ao portal Justificando. "[...] é preciso admitir a importância dessas músicas para a conscientização e a emancipação da população negra brasileira, que hoje exige os seus direitos", conclui.

 

O gênero musical e o estilo literário

“Ao contrário do que muitas pessoas pensam, o Mano Brown não deixa de fazer o plural porque ele não sabe que se fala os meninos ao invés de os menino. Ele não é ignorante. Acontece que o 's' é muito difícil de cantar. Ia soar embolado. Então, como todo mundo fala os menino, ele escreve também, pela facilidade de cantar. Ou então substitui os menino por a rapazeada”. (KL Jay em entrevista

 

Foto de divulgação do álbum Sobrevivendo no Inferno; Klaus Mitteldorf

 

Mano Brown, Ice Blue, Edi Rock e KL Jay fazem uso do rap para construir um ponto de vista periférico. Em escrita registraram o oral para performar o canto. Criaram uma estética muito particular que quebrasse com os padrões da música brasileira. Tarso de Melo comenta o Nobel de Bob Dylan para explicar a relação entre literatura e música nessa linguagem poética proposta pelos Racionais: "A resposta que Bob Dylan deu na ocasião, com muita elegância, foi perfeita, no discurso que enviou à Academia sueca: 'Músicas são diferentes da literatura. Elas são feitas para serem cantadas, não para serem lidas. As palavras das peças de Shakespeare eram feitas para serem apresentadas no palco. Assim como as letras em canções são feitas para serem cantadas, e não lidas numa página. E eu espero que alguns de vocês tenham a chance de ouvir essas músicas da maneira que devem ser ouvidas: em concertos, em discos ou das formas que as pessoas estão ouvindo músicas atualmente'. Dylan é esperto: colocou Shakespeare (e também Homero, noutra passagem do discurso) no meio da briga e, assim, deixou bem claro que a vinculação da poesia à página, ao papel, ao livro, é uma possibilidade, não uma condição. Pelo contrário, a poesia se faz e circula pelos mais diversos meios, que se somam ao texto e levam as palavras para outras esferas. Em suma: desde Homero, 'fazer um poema' nunca foi apenas 'fazer um texto'. Os Racionais se inserem nessa linha que vem de Homero, passa por Dylan e tantos outros, como os grandes poetas que fazem música no Brasil".

Ainda sobre o caráter disruptivo da obra, Acauam coloca: "o rap desloca a canção brasileira de um de seus principais pilares de organização de sentido até então: a identidade nacional pensada em termos de conciliação racial, via mestiçagem, e de classe, via nacional-desenvolvimentismo". O que o samba e a bossa nova tinham de agrupar, de pensar uma coletividade nacional, o rap teve de ressaltar as diferenças, as distâncias. E usou da linguagem, das gírias que as pessoas reconheceriam, para fazer isso. Fez questão de criar identificação com quem se relacionasse com aquele contexto e não forjar uma suposta realidade nacional.

A página do Instagram Dicionário Capão apresenta o significado de algumas das gírias usadas nas letras dos "quatro pretos mais perigosos do Brasil". Um culto à arma do grupo: a palavra. "Não sou artista. Artista faz arte, eu faço arma. Sou terrorista", declarou Mano Brown em 1998, em entrevista à revista ShowBizz.

 

Sistema carcerário e segurança pública

A mensagem central de Sobrevivendo no Inferno se articula em torno de Diário de um detento. A música, resultado de um processo coletivo de composição, foi escrita a partir dos cadernos de Jocenir, um dos sobreviventes do massacre do Carandiru (1992), que antes haviam circulado pelo presídio para serem aprovados pelo coletivo carcerário. Traduz uma visão do grupo em relação à criminalidade: "É muito mais complexo que o olhar do 'cidadão de bem' conservador (para quem o bandido bom é bandido morto) e o do 'defensor dos direitos humanos' (para quem o bandido é mera vítima da sociedade, por ser pobre)", pondera Acauam.

 

Imagem retirada do Instagram @dicionariocapao

 

O discurso do rapper funciona no sentido de se posicionar ao lado do bandido sem que sejam confundidos. Perceber a falha de um sistema, utilizar da palavra para denunciar as implicações desse lugar de marginalidade e iluminar caminhos para a sobrevivência. Aqui, vale lembrar a postura de pastor-marginal, como define Acauam, do eu-lírico que "acolhe e guia seus irmãos". Somado a isso, é interessante notar a estrutura do disco que, em concordância com o crescimento das igrejas neopentecostais, sobretudo, nas regiões periféricas, segue a estrutura de um culto: começando pela Gênesis, a pregação da mensagem central, Diário de um detento, até os agradecimentos a todos presentes no final, Salve.

 

Outras narrativas contra-hegemônicas

Além de Sobrevivendo no inferno, outras obras que abrem diálogos sobre as minorias estão, cada vez mais, sendo incluídas nos vestibulares. Para discutir a história africana e a guerra dos revolucionários angolanos contra as forças portuguesas, Mayombe, de Pepetela, foi selecionado pela Fuvest. Como única narrativa escrita por uma mulher na Fuvest e contrariando a rigidez do Parnasianismo do período, vale citar Minha vida de menina, de Helena Morley. E considerada a obra inaugural da literatura afro-brasileira e um dos primeiros romances de autoria feminina escritos no Brasil, Úrsula, de Maria Firmino dos Reis, foi escolhido para integrar a lista da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul).

Tarso de Melo comenta, em artigo para a revista Cult, que "cair no vestibular não faz de Sobrevivendo no inferno um disco mais importante. O que cresce em importância, na verdade, é o próprio vestibular, por se mostrar capaz de absorver a mais arredia e complexa manifestação cultural de nossa época". A atual juventude presencia o fortalecimento de pautas identitárias e se nutre pela vontade de mudança. Assim, é natural que as provas que funcionam como chancela para o acesso ao ensino superior acompanhem esse movimento. O jovem precisa conhecer o mundo onde vive e as escolas e faculdades precisam estar prontas para receber esses novos jovens. 

 

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