Das imperfeições da arte e da vida

08/11/2018

 

A arte que privilegia as relações e não os resultados. Desenhos feitos em conjunto, com experiências transformadoras. É a chamada “arte relacional”, defendida por Gusti, ilustrador argentino que vive há mais de 30 anos em Barcelona, Espanha. Publicado em mais de 20 países, ele já recebeu o Bologna Ragazzi Award com a publicação de Mallko y papá, sobre o processo de aceitação de seu filho Mallko, que nasceu com síndrome de Down. Desde então, muito aprendeu com o menino, autor de alguns dos traços que integram a sua premiada obra.

Engajou-se na causa das pessoas com deficiência intelectual e ajudou a fundar a Associação Windown, instituição onde oferece oficinas de desenho para contribuir na inclusão dessas pessoas. Ali, não importa o quão bonito seja o desenho, “o importante é a relação entre duas pessoas diferentes que estão desenhando”, explica. O momento da arte é o momento de igualdade de condições, algo raro no cotidiano.

 

 

“A sociedade é que aponta a deficiência, mas, se uma pessoa tem tudo o que necessita para viver, a deficiência não existe. A pessoa vai mais devagar, mas uma tartaruga vai mais devagar que uma lebre, e as duas vivem da sua maneira”, diz. Daí a importância de se perceber as necessidades de cada um, seus diferentes tempos que são mais respeitados no momento de criação artística. 

Afinal, “os filhos são como um desenho”, como ele defende no início de seu livro – “não vêm como você imagina”. Há de aceitá-los, processo que Gusti relata ao longo das restantes 200 páginas e que lhe trouxe liberdade. As crianças bonitas e perfeitas que antes desenhava deixaram de fazer sentido frente a uma nova percepção de beleza. “Não me interessa fazer coisas perfeitas, porque Mallko não é perfeito. Ninguém é perfeito. Não tenho interesse em fazer coisas bonitas gratuitamente. Quero me comunicar. Se eu posso me comunicar com três rabiscos, está bem.”

O autor lembra que tudo isso foi um “processo de exorcismo”, que começou com um questionamento de seu filho mais novo, o Théo. Uma vez, o menino perguntou ao pai o que era síndrome de Down, e logo acrescentou: “Para mim é igual se Mallko é da cor vermelha, amarela, azul ou branca, porque ele é o melhor irmão”. A aceitação da criança inspirou o pai, que entendeu que um filho não é como um desenho que pode ser “aperfeiçoado”, mas uma pessoa normal, com seus talentos e suas dificuldades.

Por isso, também, escreveu e ilustrou Não somos anjinhos, lançado neste mês pela editora Solisluna, com tradução de Ciça Fittipaldi. É a tentativa de desmistificar os preconceitos que rondam as crianças com alguma deficiência intelectual, geralmente retratadas como “anjinhos” ou “especiais”. “Eu quero erradicar essa ideia, porque não é verdade. São como todas as crianças. Têm dias bons e ruins, ficam doentes...”

Ele explica que a fisionomia de uma pessoa com síndrome de Down, por ser facilmente identificável, já gera uma compaixão imediata, que por vezes pode ser prejudicial para ela. “Há um ideário histórico de que elas são como grandes crianças e deixamos fazer tudo o que elas querem. E não está bem. Não podemos fazer exceções, porque senão elas não vão aprender, ao contrário, vão se converter em tiranas.”

E é nessa desmistificação que podemos compreender melhor outras vivências de mundo, para além dos estereótipos. Gusti percebeu, por exemplo, uma tendência das pessoas com síndrome de Down ao ancestral, principalmente na arte. Enquanto muitos ilustradores e artistas perdem-se em “coisas mentais”, “para elas [pessoas com a síndrome de Down], tudo está bem. Tudo está como tem que estar”, afirma. “Não têm necessidade de reconhecimento, trabalham para comunicar.” Vão na essência da linguagem.

É um momento, ainda, em que podem tomar suas próprias decisões, de quais cores utilizar, quais traços fazer. Isso é raro na vida de pessoas com alguma deficiência intelectual, em que outros estão sempre escolhendo por elas. São “duas horas de liberdade”, em meio à prisão que a vida pode ser. E que é para muitos dos adultos que não se permitem falhar e têm verdadeiro medo da imperfeição. É o que aprendeu Gusti com a arte e com seus filhos.  “Tem um preconceito de que tem de desenhar bem, como uma fotografia. É um conceito errado. Não tem problema em desenhar academicamente, perfeito. Mas desenho não é isso. Desenho é tudo.”

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