Da ocupação para as telas do cinema

30/08/2017

 

Dentre bares, edifícios residenciais e carros apressados, revela-se uma imponente construção, cuja fachada o passar dos anos maltrata. Um antigo hotel, onde uma pequena porta protege o caloroso ambiente interno. No amplo salão, a antiga recepção do hotel, faixas indicam o movimento que seus moradores integram: FLM, a Frente de Luta por Moradia, que realizou um verdadeiro combate para garantir o direito constitucional à moradia para as dezenas de famílias que ali habitam.

 

Ilustração Marcelo Tolentino

 

É o famoso Hotel Cambridge, localizado no centro de São Paulo. O local, símbolo da luta pela moradia nas áreas urbanas, tem muita historia para contar. Virou filme: Era o Hotel Cambridge, longa-metragem dirigido por Eliane Caffé, que misturou atores profissionais e amadores, os moradores do prédio. As crianças não ficaram de fora da história: durante o projeto, passaram a integrar oficinas para fazer filmes, com histórias criadas e nascidas em suas realidades tão particulares.

Quem coordena as oficinas são a roteirista Inês Figueiró e de Tayla Nicoletti, ilustradora de livros infantis. Juntas, em encontros semanais de duas horas que acontecem há três com as crianças, elas vêm “acompanhando o desabrochar da moçada”, como relata Tayla. “A oficina virou um espaço de encontro, e eles foram crescendo, ficando mais adolescente, vem surgindo outros interesses, as coisas das paqueras, e dos grupos. Foi um lado muito legal essa construção desse espaço de encontro”, completa Inês.

Perguntada se considerava o momento como parte de uma brincadeira, Bruna, de 12 anos e participante da oficina, afirma rapidamente: “Não. Eu levo a sério”. E é assim que os encontros são encarados. Todos chegam e sentam-se em roda, ou em torno de uma mesa quando há alguma leitura. As atividades são feitas em um grande salão. Aprendem a solucionar problemas. Onde filmar? Como produzir efeitos visuais com poucos recursos? Tudo é decidido pelas crianças, de forma coletiva.

As obras produzidas são todas publicadas no YouTube, no canal TV Cambridge, livres para qualquer um assistir. Abordam temas como xenofobia e bullying em Camilly – uma francesa no Brasil, o problema do lixo em Zoriel (curta feito em stop-motion), e lendas do lugar, como Quem viu o fantasma do Cambridge, obra de grande orgulho para o grupo. O material é diverso: também há vídeos no formato de telejornal, com entrevistas e denúncias.

O repertório das crianças é enriquecido a cada encontro, em que curtas-metragens são exibidos e, posteriormente, discutidos. O que surpreende Inês é a lucidez e o empoderamento com que tratam os assuntos. Ao assistir a Lápis cor de pele, por exemplo, foi discutido o tema do racismo. “Foram discussões muito ricas, vemos que o grupo ficou mais fechado e a discussão foi sendo aprofundada.”

Nesses debates, as crianças mostram uma grande força para abordar temas como raça e gênero. “Eles trazem algumas posições muito seguras contra racismo e machismo. E a gente, como adulto, tem o papel de intermediar, a ideia é que a gente opine o menos possível, que deixe que eles resolvam”, lembra Inês. Mas a busca pela igualdade também vai ao ser criança. Conversam com os convidados das oficinas (o roteirista Luiz Bolognesi e a diretora de arte Vera Hamburguer, por exemplo) de igual para igual. “Eles não se intimidam nem um pouco”, lembra Tayla.

Isso surge também desse espaço de fala e de escuta. As oficinas funcionam mais como uma conversa do que como uma aula e tudo é decidido coletivamente, com votação. “A relação não é hierarquizada. Não, a gente é parceiro”, diz Inês.

 

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