Como é ser professora de comunidade ribeirinha no Pantanal durante a pandemia?

27/08/2021

Por Tatiane Zabala Gomes

“A cidade onde a gente morava foi feita em cima de uma pedra branca enorme. E o rio Paraguai, lá embaixo, corria com suas piranhas e seus camalotes”

Manoel de Barros

 

Alunos do Acaia Pantanal têm aula domiciliar na pandemia

Aula domiciliar de matemática com alunos da Jatobazinho. Fonte: Instagram Acaia Pantanal

Sou professora pedagoga formada há 5 anos. É um tempo bem curto se comparado ao de outros profissionais da área. Apesar de pouco tempo, vivi nestes anos profundas mudanças nas escolas de todo o Brasil. Hoje tenho clara visão da realidade em que vivo: a educação voltada para uma comunidade ribeirinha do Pantanal da cidade de Corumbá/MS.  Em extensão territorial, Corumbá é a maior cidade do Estado do Mato Grosso do Sul, tendo sua população rural distribuída em comunidades ribeirinhas, assentamentos e fazendas.

Trabalho em uma escola rural ribeirinha às margens do rio Paraguai, a cerca de 90 km do centro urbano de Corumbá, em localidade isolada, só acessível por barco ou avião. Meu primeiro desafio, quando recém-formada, foi trabalhar no cargo de professora por um período de 3 anos. Concursada pelo município, atuei na área urbana por 2 anos e retornei, neste ano, à mesma escola onde comecei minha carreira, agora como coordenadora pedagógica.

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Professores do Acaia Pantanal levam a escola até os alunos na pandemia

Uma aula domiciliar de português com alfabeto móvel, durante a pandemia. Fonte: Instagram Acaia Pantanal

 

O Instituto Acaia e a Escola Jatobazinho

“Que a importância de uma coisa há que ser medida pelo encantamento que a coisa produza em nós”

Manoel de Barros

 

As atividades da Escola Jatobazinho foram iniciadas há mais de 10 anos como forma de ajudar a comunidade que demandava a criação de um espaço com educação de qualidade acessível a todas as crianças da região. Anos antes já havia sido implantada uma escola municipal nas proximidades de onde a Escola Jatobazinho está localizada. Anteriormente à existência destas duas escolas, a realidade era de trabalho infantil voltada à catação de isca para o turismo de pesca. Iniciamos nossas ações, em 2008, com um projeto de escola itinerante, enquanto os espaços físicos de uma antiga pousada iam sendo reformados para constituírem-se em uma escola.

Hoje, os alunos que atendemos estudam em regime de alternância, vêm para a escola na segunda-feira e retornam às suas casas aos sábados, de forma a garantir o convívio com suas famílias aos finais de semana. Aqui, estamos acostumados com o movimento das crianças o tempo inteiro! Desde o momento em que acordamos, até o momento em que vamos dormir. É movimento, risada, barulho e vida. Essas quatro palavras resumiriam a nossa rotina. Com a covid-19, ouvíamos apenas o silêncio na escola.

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O início da pandemia

"A mãe disse que carregar água na peneira era o mesmo que roubar um vento e sair correndo com ele para mostrar aos irmãos"

Manoel de Barros

 

É muito curioso relembrar como a pandemia começou no Brasil. Ninguém sabia muito de nada. A única coisa que pensávamos é que duraria uns 15 dias. Que se estenderam para 30. Que se transformaram em dois meses. Até durar mais de um ano. Pisamos em areia movediça e, por vezes, caímos. O que passava pela cabeça de todos os envolvidos com as crianças ribeirinhas era: “como vamos atendê-los?”. Esse como ecoou na nossa cabeça por muito tempo.

Alunos do Acaia Pantanal em proposta de aula domiciliar na pandemia

Aula domiciliar de alunos do 4º ano da Escola Jatobazinho. Fonte: Instagram Acaia Pantanal

Em um cenário nacional, muitas escolas passaram a atender seus alunos poor meio de plataformas digitais on-line. As tecnologias ajudaram muito, aproximaram aqueles que estavam distantes. Mas, em nosso caso, estamos falando de crianças ribeirinhas que não possuem acesso à energia elétrica em casa e que não vivem só à margem do rio, mas também à margem da sociedade. Para eles, tudo é literalmente distante, e por muitos anos foram invisíveis aos serviços públicos essenciais. Aulas on-line nunca foram uma opção para nós. Resolvemos embarcar os professores para fazer visitas domiciliares mensais aos alunos. Assim, pelo menos, o vínculo não seria quebrado. E esse vínculo se manteve firme até o final de 2020.

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As aulas domiciliares

"Acho que o quintal que a gente brincou é maior do que a cidade" 

Manoel de Barros 

 

Iniciamos o ano de 2021 cheios de esperança e ansiosos. Finalmente iríamos conseguir voltar à escola! Mas uma nova onda de covid atingiu nossa cidade como um caminhão desgovernado. Hospitais cheios, escolas vazias. Dessa vez decidimos ir além. Iríamos todos os dias para as casas das crianças. Os educadores pegaram suas caixas de materiais pedagógicos e saíram rio a fora.

Aqui na comunidade tudo fica muito longe. O porto para acesso aos alunos moradores em localidade mais distante ficava há 1h30min de viagem numa embarcação rápida chamada “voadeira”. Isso não nos deteve. Acredito que isso nos fortificou. Pensando a grosso modo, a ideia da realidade que nossos alunos vivem sempre esteve presente como uma ideia, quase abstrata. Mas ver e vivenciar essa realidade diariamente ressignificou a nossa forma de ver a vida.

Crianças do Acaia Pantanal têm aula de português na pandemia

O 4º ano e as propostas levadas até eles por seus professores. Fonte: Instagram Acaia Pantanal

Algumas famílias que atendemos moram em regiões tão distantes e de difícil acesso que não conseguimos chegar com nossos barcos. Os pais e as crianças precisavam ir aos portos que alcançávamos, em percurso de mais de 5h viagem de trator, cavalo e pequenas embarcações, para que as crianças participassem das aulas. A maioria dos alunos não faltou nenhum dia às aula, mesmo com toda dificuldade enfrentada por suas familias. É muito difícil, enquanto educador, imaginar que a educação, algo que consideramos como direito básico, ainda não é facilmente acessível a muitos dos nossos ribeirinhos.

Nós levávamos tudo o que podíamos para as horas que passávamos com os alunos. Quase todas as nossas aulas eram feitas ao ar livre, no chão batido em frente ao rio. Carregamos tapetes para sentar e delimitar a sala de aula. Levamos materiais de estudo e também levamos o recreio com os jogos que eles gostavam e as músicas que ouviam na escola. Levamos alimentos para um almoço comunitário, onde gentilmente as famílias se organizavam e cozinhavam comidas muito boas. Levamos caixas de jogos de montar, jogos lógicos, corda para pular, bola para jogar, dentre outros itens de recreação.

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De barco, Acaia Pantanal leva a escola até os alunos na pandemia

De barco, professores da escola Jatobazinho levavam todo o material para as crianças ribeirinhas. Fonte: Instagram Acaia Pantanal

Nas aulas percebemos que conseguiríamos acolher não só os alunos, mas também as famílias presentes. Essas famílias são compostas por mães, pais, avós e irmãos mais velhos e mais novos. Então eles passaram a fazer parte da nossa rotina educativa também. Oferecemos nossa escuta para suas histórias de vida, contamos outras várias histórias e disponibilizamos livros para que lessem. Leitura feita até por quem não teve a oportunidade de ser alfabetizado, já que livros abrem oportunidade para todos serem incluídos. 

Ouvimos falas muito tocantes, como: “Quando eu imaginei minha casa florida assim, cheia de professor?”; “Minha casa é uma escola!”; “Minha filha nunca teve escola perto, então nunca aprendeu a ler. Agora ela já está lendo de carreirinha!”; “Eu acordo cedo para trazer meu filho pra estudar, sou muito grato por vocês estarem vindo aqui, porque eu nunca tive oportunidade de ir pra escola”; “Como eu gosto de você, professora!”. As palavras nunca ficam soltas ao vento, elas sempre deixam marcas eternas.

Esse momento de aula domiciliar também nos fez enxergar uma realidade que muitos brasileiros viveram nesse ano: a realidade da fome. É importante ressaltar que, além da covid, também vivemos um grande incêndio no Pantanal. A queimada assolou a pouca renda da comunidade, que vive da pesca e da catação de isca. Os lugares onde se catava a isca secaram. As árvores frutíferas queimaram. Muitos animais morreram. Isso nos faz pensar que estamos em uma comunidade com tantas potências, tanta inteligência e tanta garra, mas também estamos em uma comunidade de sobreviventes. Isso nos fez querer ser cada vez mais presentes na vida deles.

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Aulas domiciliares do Acaia Pantanal durante a pandemia

Para alcançar os alunos de regiões distantes, algumas famílias se reuniam em um porto equidistante, onde encontravam os professores para as aulas. Fonte: Instagram Acaia Pantanal

 

Os resultados das aulas domiciliares           

“Os andarilhos, as crianças e os passarinhos têm o dom de ser poesia” 

Manoel de Barros        

Todos os dias que voltávamos do rio, propiciava uma reflexão diferente. Enfrentamos o sol, a fumaça, o frio, a chuva, fortes ondas, vento norte, vento sul e muita poeira. Encontramos esperança, afeto e conhecimento. E o que encontramos nos marcou. Viver tudo isso foi de uma importância enorme para a criação do Ser Educador que habita em nós.

Afinal, a educação muito pouco tem a ver com o lápis, o papel, as carteiras e o quadro negro. Educação está relacionada com a troca que fazemos com o outro, e com o quanto a nossa dedicação faz diferença na vida daqueles que queremos atingir. E felizmente posso dizer: nós fizemos diferença no tempo em que nos dedicamos fortemente ao que acreditamos. E o que acreditamos é que ninguém pode e nem deve ficar à margem.

Tatiane Zabala Gomes é coordenadora pedagógica da Escola Jatobazinho, de Fundamental 1, do Instituto Acaia. É professora pedagoga formada pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS).

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