Como a nudez é retratada nos livros infantis?

09/04/2021

O corpo humano e as suas formas e funções têm potencial para despertar perguntas dos pequenos com as quais os adultos podem ficar desconfortáveis. Assim, a representação da nudez, especialmente em livros infantis, é um tema tão delicado quanto antigo. E, toda vez que um livro infantil que traz essa questão é editado ou reeditado, o dilema se reacende: como retratar a nudez nas suas páginas? A resposta tem variado um pouco conforme o contexto histórico, mas mostra que já fomos até um pouco mais livres na representação do corpo humano.

É essa a percepção ao analisar A chave do tamanho, obra infantil de Monteiro Lobato que acaba de ser lançada em edição de luxo pela Companhia das Letrinhas. Nela, os personagens ficam sem roupa quando diminuem de tamanho por conta de um plano da Emília para acabar com a Segunda Guerra Mundial.

Nessa versão, ilustrada pela artista plástica Lole, Emília aparece na capa enrolada em um pedaço de algodão. Mas, ao longo da história, já foi ilustrada de saia, escondida atrás da janela, envolta em algodão, com corpinho de pano e até sem roupa mesmo, de costas, em ilustração de Manoel Victor Filho.

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Capa da nova edição de luxo de A Chave do Tamanho, de Monteiro, ilustrada por Lole

Emília desliga por acidente a Chave do Tamanho e
encolhe a humanidade, que perde as roupas. Leia +.

Lole considera que vivemos um momento de um certo retrocesso em temas que deveriam se encaminhar para mais aceitação e liberdade. “A sensação que tenho é de que parece que sempre estamos pisando em ovos e que, a qualquer momento, um deles pode quebrar. Trabalhando com livros para crianças, essa preocupação dobra. Sou mãe de duas meninas e entendo as preocupações dos pais. Informar do jeito correto e conscientizar crianças sobre temas complicados não é uma tarefa fácil, mas, na minha opinião, é o único caminho para uma sociedade melhor no futuro”, reflete a ilustradora.

 

Arte mediada

Como os livros são uma forma de arte (uma representação da realidade), é interessante ter em mente que temas como a nudez podem sempre ser contextualizados e mediados. Além disso, eles também oferecem espaços e oportunidades para conversas importantes com as crianças.

E é bom lembrar que as crianças lidam com temas que são considerados tabus de formas muito diferentes dos adultos. Afinal, quem não se lembra do rei nu no conto de Andersen? O fato de que o rei não estava vestido é justamente apontado por uma criança, enquanto os adultos estavam muito envolvidos em manter as aparências por motivos variados. Esse é um caso representativo da forma mais direta e espontânea com que as crianças lidam com temas que para os adultos podem ser complexos. 

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Emília e seus novos amigos criam uma casa no chapéu do Visconde, em A Chave do Tamanho. Ilustração: Lole.

Para Belinda Mandelbaum, psicanalista e professora do Instituto de Psicologia da USP, “a literatura e as artes podem ajudar muito porque oferecem símbolos e referências para a criança e para os adultos conversarem sobre alguns temas. É fundamental para a criança e para todos nós esse trato com a questão do próprio corpo em contextos adequados. E o que que é um contexto adequado? É um contexto que envolve respeito com o próprio corpo e com o corpo do outro. É uma forma de autoconhecimento, que também passa pelo conhecimento do próprio corpo, da nossa intimidade, de saber quais são os limites e possibilidades desse corpo e os cuidados adequados com ele”. Ela explica que tudo isso faz parte do desenvolvimento de uma boa relação com o próprio corpo e é um processo fundamental que se dá ao longo do desenvolvimento.

 

Humanidade exposta

No livro de Lobato, Emília resolve ir até a Casa das Chaves para desligar a Chave da Guerra e acabar de vez com aquele sofrimento — e impedir que a própria humanidade tivesse um fim. Só que, sem querer, desliga a Chave do Tamanho, e todos os seres humanos ficam bem, bem pequenos. Enquanto isso, todas as outras coisas e criaturas do mundo permanecem com o mesmo tamanho de antes, inclusive as roupas – e, de repente, todos se veem nus.

O livro foi publicado pela primeira vez em 1942, em plena guerra, e é nesse contexto que o enredo se desenrola. De uma hora para outra, a humanidade se vê literalmente sem roupa e diminuída, e precisa se adaptar a essa nova realidade para sobreviver.

Emília do tamanho de um inseto, coberta por seu cabelão, em A Chave do Tamanho. Ilustração: Lole.

A simbologia para o próprio momento da história mundial fica clara por meio da vulnerabilidade que a nudez e a pequenez representam, como elementos simbólicos centrais da narrativa. Não se trata da realidade “nua e crua” (com o perdão do trocadilho), mas de leituras e representações.

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Desnudando os personagens

Pesquisador e colecionador da obra lobatiana, o designer Magno Silveira acredita que a nudez em A chave do tamanho é, antes de tudo, simbólica e política, e não necessariamente abre discussões sobre sexualidade ou questões de gênero.

Com base no trabalho dos outros três artistas que já ilustraram o livro – Jurandyr Ubirajara Campos (em 1942), André Le Blanc (em 1947) e Manoel Victor Filho (em 1970) –, ele considera que essa questão fica evidente “a partir mesmo das ilustrações: Hitler e o Coronel Teodorico são ‘desnudados’ e, por causa disso, ficam ridículos. É como a velha história de Andersen em que o rei está nu”.

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Coronel Teodorico, em "A Chave do Tamanho"

Coronel Teodorico sem roupa em A Chave do Tamanho, ilustrado por J. U. Campos (esquerda), André Le Blanc (direita, acima) e Manoel Victor Filho (acervo Magno Silveira)

Magno aponta que nenhum deles ousou desenhar Dona Benta ou Tia Nastácia nuas: “As duas amigas sempre aparecem trajando alguma sobra de tecido, algo assim. Por outro lado, o Coronel Teodorico é ridicularizado pelos três ilustradores, que se aproveitam para desnudar o fazendeiro, algo perfeitamente alinhado com as intenções de Lobato, que foi sempre ridicularizar os poderosos”.

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Tia Nastácia e Dona Benta ilustradas por Manoel Victor Filho em "A Chave do Tamanho"

 

Tia Nastácia e Dona Benta em A Chave do Tamanho, ilustradas por Manoel Victor Filho (acervo Magno Silveira)

O outro poderoso que se tornou alvo de zombaria nos traços de Le Blanc e Manoel Victor Filho foi Hitler. “Le Blanc ‘flagra’ o nazista nu e assustado, sozinho, delineado por um fundo negro que toma conta do seu corpo. Já Victor Filho mostra Hitler diminuto, mas atrevido, nas mãos do Visconde gigante. Os dedos do sabugo tapam as partes pudendas do nazista de perninhas finas”, revela Magno.

Visconde de Sabugosa e Hitler

O Visconde segura um diminuto Hitler em A Chave do Tamanho, ilustrado por Manoel Victor Filho (acervo Magno Silveira)

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A nudez de Emília na interpretação dos ilustradores

Considerando que a nudez, nesse caso, é um recurso narrativo e, portanto, ligado ao fazer artístico, como foi o processo de ilustrar os personagens de A Chave do Tamanho sem roupas?

Emília e seu cabelão ilustrados por Lole na nova edição de A Chave do Tamanho, da Letrinhas 

“Com toda certeza, essa foi a questão mais delicada do livro, principalmente pelo fato da Emília não ser mais uma boneca. Acho que não me preocupei muito com a nudez porque a personagem tem um cabelo bem cheio e comprido. Isso facilitou muito e ampliou as possibilidades de enquadramentos mais abertos, restringindo bem pouco o que poderia ser desenhado. A solução mais simples e eficiente seria colocar o cabelo na frente, além de mudar os enquadramentos. No caso dos outros personagens, onde não haveria o recurso do cabelo comprido, eu busquei usar coisas presentes nas cenas (flores, folhas etc), fazendo com que os personagens não ficassem expostos”, conta Lole.

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Emília, Juquinha e Candoca envoltos em nuvem na ilustração de Lole

Magno Silveira considera que todos os ilustradores devem ter tido alguma dificuldade para retratar a nudez em A Chave do Tamanho, especialmente por se tratar de um livro infantil. “Vejo que cumpriram bem o desafio, pois nas pesquisas em imprensa da época (início até meados dos anos 1940), não encontrei matérias que citassem a nudez no livro, todas são elogiosas e destacaram o aspecto educativo de A Chave”, explica o pesquisador.

 

Emília em ilustração de Manoel Victor Filho

Ele pondera que, pelo estilo de J.U.Campos, com seu traço de pincel que simplifica a imagem e descarta detalhes, pode ser que ele tenha tido uma dificuldade menor para lidar com o nu dos personagens. Por outro lado, André Le Blanc e Manoel Victor Filho têm um estilo mais detalhado, o que poderia ter representado um grau de dificuldade maior.

Capa de "A Chave do Tamanho", de J. U. Campos

A capa de J. U. Campos para A Chave do Tamanho (acervo Magno Silveira)

Magno comenta ainda sobre o fato de Emília ter se tornado “gente de verdade” no livro. “Evidentemente, ela é a personagem mais retratada no livro. Porém, André Le Blanc foi o único ilustrador, entre os três, que desenhou Emília como gente.”

O estudioso observa que, como Lole, os outros três artistas recorreram à “elaboração de ângulos estratégicos da figura, além de outros truques como objetos em primeiro plano na altura da pélvis, folhas cobrindo parte do corpo e perspectivas onde o objeto ou o animal gigantesco é a referência, e os personagens, de tão pequenos, não passam de silhuetas ou contornos simplíssimos”.

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