Bibliotecas comunitárias: resistência cultural, poética e política

14/09/2017

 

 

Por Bel Santos Mayer

Quando pensamos em bibliotecas, facilmente nos vem a imagem de uma biblioteca pública; de uma coleção de livros e documentos, criteriosamente organizada e disponibilizada gratuitamente ao público (em sua maioria estudantes), para consulta ou empréstimo. Ainda que no Brasil as Bibliotecas Públicas sejam um equipamento das Secretarias de Cultura, em nosso imaginário estão associadas à escolarização. É um desafio conceber as bibliotecas enquanto centro de referência para a população em geral acessar informações e leituras.

 

Ilustração: Marcelo Tolentino

 

Para o Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas (SNBP), considerado o vínculo institucional, as bibliotecas podem ser públicas, escolares, universitárias ou comunitárias. Minha vivência em bibliotecas comunitárias desde os anos 90 leva-me a afirmar que associar o adjetivo “comunitária” ao vínculo institucional diz pouco sobre o que esses espaços são.

As bibliotecas comunitárias no Brasil nascem diretamente relacionadas ao descaso histórico do Estado no tratamento das políticas do livro, da leitura e de bibliotecas e à distribuição desigual dos equipamentos culturais. Indivíduos e grupos comunitários de áreas periféricas e rurais privadas de bibliotecas públicas e escolares, apoiados ou não por instituições, escolheram a defesa da democratização do acesso à leitura e à escrita como suas causas.

Em minha juventude, tive a oportunidade de juntar-me aos meus coetâneos numa salinha nos fundos de uma igreja para ler livros que não chegavam às nossas escolas ou que, talvez, tenham ficado trancados a “sete chaves” na pequena biblioteca escolar – ou ainda esquecidos em alguma caixa num cantinho qualquer.  Queríamos conhecer autores e autoras que falassem sobre nós, que falassem conosco. Queríamos escrever nossas histórias, dizer o que pensávamos sobre o vivido, “ressuscitar o que parecia sepultado”, “gravar o ainda por fazer”, “preservar o passado e promover rupturas”, como escreveu Bartolomeu Campo de Queirós (Para ler em silêncio; editora Moderna, 2007).

E não estávamos sozinhos(as). Em diferentes pontos da cidade de São Paulo e do país, em espaços improvisados nos fundos de associações ou até mesmo no quarto de alguém, com livros doados e dispostos em estantes feitas com materiais descartados, jovens ávidos por serem a ponte entre potenciais leitores e os livros, criaram Bibliotecas Comunitárias e tiraram da invisibilidade autores e autoras esquecidos pelo cânone literário: Carolina Maria de Jesus, Maria Firmina dos Reis, Solano Trindade, Oliveira Silveira e muitos outros(as) que falaram sobre nós e para nós.

A pesquisadora Elisa Machado, em sua tese de doutorado As Bibliotecas Comunitárias como prática social no Brasil”(2008), encontrou pontos comuns nestes processos, que conferem particularidades às bibliotecas comunitárias:

  • Estão localizadas em regiões periféricas;
  • São criadas efetivamente pela e não para a comunidade;
  • São vistas como uma forma de combate à exclusão informacional e como forma de luta pela igualdade e justiça social;
  • A gestão é feita por lideranças com consciência crítica e política sobre o potencial transformador do acesso à informação e à leitura;
  • Reconhecem a importância da negociação e articulação com o poder público e outras organizações e fazem isso com apoio da comunidade.

Nos últimos anos merecem destaque a criação da Rede Nacional de Bibliotecas Comunitária, formada por 125 bibliotecas comunitárias organizadas em 11 redes locais, a rede de bibliotecas da Expedição Vaga-Lume (vagalume.org.br) com mais de 150 bibliotecas comunitárias na região norte do país e as mais de 100 Bibliotecas Comunitárias criadas pelo projeto Ler-É-Preciso, do Instituto Ecofuturo (ecofuturo.org.br). Carecemos de um mapeamento, que revele a capilaridade dessas bibliotecas em território nacional. De fato, essa é uma das recomendações das bibliotecas comunitárias incluídas nos Planos Municipais do Livro, da Leitura e das Bibliotecas (PMLLB) dos quais participaram ativamente.

Em São Paulo, a Rede LiteraSampa, com o Grupo de Trabalho do Plano Municipal do Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas (GT do PMLLLB/SP), realizou mais de 40 escutas públicas na cidade e sistematizou as propostas e os desejos da população para esse tema no anexo da Lei 16333/2015, carinhosamente chamada de Lei Antônio Cândido, em agradecimento à teorização do Direito Humano à Literatura.

Uma das escutas aconteceu durante o Seminário LiteraSampinha (2014), com 104 crianças e adolescentes com idades entre 5 e 14 anos, frequentadores de bibliotecas comunitárias. Inspirados pelo poema “Paraíso”, de José Paulo Paes, falaram, escreveram e desenharam a partir da consigna “Se esta biblioteca fosse minha...”. Para eles e elas, a biblioteca:

  • “...não teria escadas ou teria elevador para as pessoas com deficiência entrarem”;
  • “...teria estantes baixinhas para as crianças pequenas pegarem os livros sozinhas”;
  • “...teria livros novos e eu perguntaria o que os leitores gostam de ler”;
  • “...colocaria em cada ônibus por qual biblioteca ele passa, para as pessoas conhecerem, igual fazem com o shopping center”;
  • “...seria um lugar para passear com a família.

Essas propostas e todas as demais seguem apenas no papel. As bibliotecas comunitárias têm representação no Conselho Municipal do PMLLLB/SP, composto por membros da Sociedade Civil e por representantes das Secretarias Municipais de Educação e de Cultura e da Câmara dos Vereadores de São Paulo. Desde a posse em 04/12/2016, foi realizada uma única reunião, sem encaminhamentos importantes.

O cenário é de desencantos nos setores do livro, da leitura e das bibliotecas: editoras e livrarias sendo fechadas, programação e funcionamento de bibliotecas reduzidos, orçamentos congelados e por aí vai. As bibliotecas comunitárias resistem: seguimos lendo, escrevendo, levando poesia para as ruas. Seguimos lutando por uma política do livro, da leitura e das bibliotecas. Estamos convencidos(as) de que, se desejamos, se desejamos muito um “país de leitores”, temos que lutar politicamente por ele. E não podemos ir sozinhos. Vamos?

***

Bel Santos Mayer é educadora social, licenciada em Ciências/Matemática, Bacharel em Turismo e tem especialização em Pedagogia Social. É coordenadora do Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário (Ibeac) e gestora da Rede LiteraSampa. Desde a década de 1990, apoia a criação de bibliotecas comunitárias em áreas periféricas da cidade de São Paulo. Membro do Grupo de Trabalho do Plano Municipal do Livro, da Leitura, da Literatura e da Biblioteca da São Paulo – GT PMLLLB/SP. É docente da pós-graduação: Livros, crianças e jovens: teoria, mediação e crítica, do Instituto Vera Cruz. 

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