As cores transbordam da janela de Vanina

22/10/2019

 

“Até onde lembro, eu era uma menina muito tranquila e bem tímida, por isso gostava muito de desenhar, assim conseguia expressar meus sentimentos. Minha mãe disse que eu fazia muitas cartinhas com desenhos para ela e meu pai. Ela guarda essas cartinhas como um tesouro.”

Vanina Starkoff se não lembra dos livros que a cativavam na infância, mas se recorda das ilustrações. Nos papéis de carta com as imagens delicadas feitas pela artista Sarah Kay, a hoje ilustradora argentina se encantava e inspirava na doçura e na tranquilidade que as personagens passavam. Vanina transmitiu também sentimentos que cativaram os leitores de Da minha janela, mesmo para quem conheceu o Morro do Alemão apenas pela janela aberta do livro.

 

 

Vanina se formou em design gráfico na Universidade de Buenos Aires, mas não sentia muita paixão criando e trabalhando em peças de design, até descobrir o universo dos livros ilustrados para crianças. “Fiquei muito apaixonada e animada em pensar que eu poderia me expressar através dos livros e das ilustrações assim que me joguei por inteiro nesse caminho”, conta. Foi nesse momento que conheceu o também ilustrador colombiano José Sanabria, que a ajudou a descobrir não só sobre técnicas ou narrativas visuais, mas também a se desenvolver como ilustradora profissional. “Ele me animou muito a ter confiança em mim”, relembra.

A ilustradora argentina, antes mesmo de morar em terras brasileiras, já trabalhava com algumas editoras do Brasil. Depois, quando veio morar no Rio de Janeiro, conheceu o autor Otávio Júnior. “A gente se encontrou numa Flip, em Paraty, conversamos bastante e trocamos ideias sobre nossos trabalhos. Falei que queria desenhar a Igreja da Penha [um ícone da comunidade de Otávio] e, depois disso, ele me convidou para desenvolver um projeto chamado Da minha janela.” O convite de Otávio veio com um requisito, no entanto: se topasse participar, Vanina teria que conhecer bem os cotidianos de várias comunidades cariocas. “Topei a ideia, fiquei muito feliz. Foi realmente um presente da vida criar esse livro junto ao Otávio.”

 

 

Andanças para conhecer janela à dentro

 

Com esse pedido, começaram as pesquisas para o livro Da minha janela. Otávio Júnior apresentou as comunidades do Rio em diversos passeios. A ilustradora ficava apreensiva por não saber como conseguiria converter todas as pessoas e vivências do local nas suas páginas. Outras dificuldades também surgiam pelo tempo corrido, já que era complicado desenhar entre as andanças. Então, quando voltava ao seu “cantinho de trabalho”, conseguia desenhar com mais fluidez, depois de absorver os retratos que vira. “Era o momento de deixar rolar todo aquele conteúdo, imagens e vivências que ficaram dentro de mim.”

 

 

Com isso, aos poucos, foi rascunhando elementos e situações sem pensar muito no resultado final, mas curtindo o caminho que estava atravessando. E deu certo: “Simplesmente íamos vivendo coisas que encaixavam perfeitamente com o texto, não tivemos que forçar nada, tudo foi acontecendo muito naturalmente”. Para a ilustradora, compartilhar esse tempo com Otávio também ajudou a entender as imagens. “Ouvi dizer que, quando pessoas se juntam para fazer um livro, uma fica um pouco com a alma da outra. Sinto que é assim”, comenta.

“No passeio que demos na favela Tavares Bastos, topamos com o grafite da Malala, e Otávio me contou sobre o projeto da Pamela Castro. Na hora não sabíamos que seria parte de uma das páginas duplas do livro. Depois, quando eu voltei no meu cantinho de trabalho, senti que essa imagem encaixaria perfeito com uma frase do livro, e assim que foi”. Vanina, assim, foi aderindo referências de grafites e elementos que fazem parte da paisagem das comunidades e, para ela, é essa proximidade com o espaço e com o autor que foi um diferencial em relação aos seus outros projetos, mesmo os brasileiros: “Foi a primeira vez que compartilhei todo o processo de criação com o autor por perto, com a possibilidade de conversar, de trocar ideias. Uma experiência que não tinha vivido antes, por isso eu disse que foi um grande presente da vida”.

 

 

Enquadrando os passeios na tela

 

As inspirações para a criação dos personagens foram os mesmos moradores e as pessoas que Vanina foi encontrando no caminho dos seus passeios e, para a elaboração deles, tomou um cuidado especial: “O que me preocupa com a representação dos personagens é que os moradores se sintam refletidos neles”. O personagem narrador do livro foi o caso mais curioso, porque a ilustradora já o tinha desenhado no seu repertório de personagens. “Um dia, dando uma olhada nas imagens, percebi que um dos personagens desenhados era o Otávio!”.

 

 

No processo, foi discutido uso da paleta de cores dos cenários da obra. Numa versão inicial, o clima da comunidade estava ficando um pouco mais romântico demais, com as casinhas em tons de rosas, que a artista elaborou para fugir do clichê laranja na representação dos tijolos das construções. “Então a editora me falou para fazer uma mudança nisso, e fui procurando outros tons de rosas e até laranjas”, explica. O resultado final foi um quadro mais colorido e diverso.

 

 

Mesmo com essas especificidades da obra Da minha janela, a técnica que Vanina usou é a mesma que vem aplicando nos seus últimos livros, ao trabalhar um pouco à mão (pintar, desenhar) e depois digitalizar esses elementos e montar o todo no computador, mas sem deixar perder as marcas do “feito à mão”, como a ilustradora conta: “Gosto de que não se perca a traço, a pegada de quando trabalhamos à mão, por isso na montagem digital cuido muito de manter essa pegada manual. Gosto também da parte digital, em que tenho mais liberdade para compor, posso movimentar os elementos de uma cena mais livremente, mudar as cores, mudar os tamanhos, ajustar detalhes. Desfruto ambas fases do trabalho”.

Com esses sentimentos que transbordam sua arte no livro, Vanina finaliza dizendo que Da minha janela a ensinou que o caminhar a permitiu escrever a história naturalmente, como os passeios que fez e o que o leitor faz, ao conhecer a comunidade pelos olhos do narrador. “Me ensinou que é bem importante desfrutar e aproveitar esse caminhar… Aí que está o verdadeiro presente.”

 

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