A cor da saudade de Marilda Castanha

22/01/2018

 

Henrique Castanha sempre pareceu à filha um personagem de ficção. Ostentava sobre os braços enormes mãos – não apenas no sentido físico, mas também simbólico, pessoa generosa que foi. Quando faleceu, a filha quis prestar-lhe homenagem. Três anos foram precisos para isso, já que a ilustradora não queria criar algo apenas memorialístico. Nasceu então o livro A quatro mãos, acalentado na saudade e nas memórias de infância em Minas Gerais, terra natal da premiada autora Marilda Castanha.  

 

 

“Essa ‘mineirice’ não tem jeito, não nos abandona”, nos conta a autora, vencedora do prêmio internacional Nami Concours, na categoria Purple Island, na Coreia do Sul. A experiência no exterior, antes dessa recente premiação, a fez buscar sua própria identidade. Foi quando deixou transbordar as influências de matrizes indígenas e africanas. Mais tarde, reavaliou o seu trabalho – não queria ficar marcada pelas especificidades de seus desenhos. “Ter raízes é ter tradição, memória, respeito pela sua cultura. Mas sem que isso seja um receituário, um manual para ser seguido”, explica. Não sabe dizer se suas histórias chegam a ser universais. "Só o outro, do outro lado do mundo, é que pode mesmo dizer.”

 

 

Apesar das restrições que a autora impõe a essa universalidade, explica que A quatro mãos é permeado por personagens reconhecidos largamente: o "afeto" e a "saudade", esta sem formato nem cor, segundo a autora. Talvez incolor, mas não inofensiva – pois a saudade “embaça os olhos da gente”. Cor tem a infância, que decidiu retratar com tons fortes. Contrariou a Marilda do início do processo, que pensava em utilizar o preto e branco ou o sépia. Não: a jabuticabeira em flor, os passeios para as cidades vizinhas a Belo Horizonte aos domingos e as brincadeiras no quintal, tudo isso merecia ser retratado com vivacidade.

 

 

Após decidir que o livro percorreria a perspectiva das mãos, o próximo passo foi encontrar os diversos sentidos da palavra que tanto usaria. Das consultas ao dicionário, surgiram listas e mais listas de expressões como “mão de ferro”, “mão cheia” e “deixar na mão”, presentes no texto e acompanhadas de uma narrativa visual. A partir de muitas metáforas, o luto virou livro.

Confira abaixo a prosa saborosa que tivemos com a autora.

 

Como surgiu a ideia do livro e como ele foi sendo concebido, gestado, criado...? Pode nos contar um pouco sobre o seu processo criativo?

Marilda Castanha – "A quatro mãos" é dedicado ao meu pai, Henrique Castanha. Há muitos anos que acalentava a ideia de fazer um livro em que ele fosse um personagem. Não só por causa do afeto, do grande amor por ele, mas também porque ele sempre me pareceu, neste mundo real, um personagem de ficção. O jeito dele, as  coisas que ele falava e fazia me pareciam de alguém único, quase inventado! Quando faleceu, em 2011, essa vontade de fazer um livro ficou muito mais forte em mim. Mas eu não queria, de forma alguma, que o livro soasse como algo memorialista, biográfico. Muito pelo contrário, queria evitar esse enfoque. E não sabia como começar. Fiz então várias anotações e me lembro que, em uma delas, escrevi sobre as mãos enormes que ele tinha. Não só no aspecto físico, mas também simbólico, como uma pessoa generosa. Foi exatamente aí, dessa lembrança e característica, que surgiu a ideia de fazer uma história sobre a perspectiva das mãos e dos diferentes sentidos da palavra mão. Comecei então a fazer listas (lembrando que fazer lista é uma coisa presente no processo de criação de outros livros meus). Como o Aurélio me ajuda! Fui pro dicionário e anotei todas as expressões relacionadas com a palavra mão. A partir daí é que construí o texto, "montando-o" com as expressões que faziam sentido para a história que eu queria contar. Também construí uma narrativa visual, paralela à do texto. O leitor vê também uma outra história, contada pela imagem. Começa quando a garotinha faz um desenho que é pregado na geladeira e que reaparece no final do livro, fechando as duas narrativas.

 

O livro é carregado de metáforas, sempre muito especiais em suas obras. Poderia falar um pouco sobre a construção de metáforas visuais no livro para as crianças?

Marilda Castanha – Então, metáfora é uma figura de linguagem, não é mesmo? E se usamos o termo metáforas visuais, estamos afirmando que a imagem é também um tipo de linguagem, que comunica algo e tem narrativa. Mas, para construirmos metáforas (visuais ou não), é preciso aproximar sentidos diferentes. O livro ilustrado (seja para crianças ou não) usa com muita frequência situações que propõem essa conversa entre texto e imagem, e usando metáforas. Não são somente ilustradores de livro ilustrado fazem isso. Poetas visuais, chargistas e cartazistas (geniais!) no mundo inteiro oferecem exemplos de trabalhos que usam o conceito de metáfora visual com imensa propriedade. Eles pedem a presença do pensamento do leitor para dar significado ao texto, visual ou não. E, no caso específico desse livro, trabalhei com metáforas tanto no texto quanto na imagem. Expressões como "mãos de ferro", "mão cheia", "deixar na mão" e tantas outras estão no livro e são usadas no dia a dia. E confesso que não pensei, ao trabalhar com essas metáforas, especificamente na criança ou no mundo infantil. Pensei no que existe, no que vivo e vivi e fui fazendo.

 

"A quatro mãos" fala das relações familiares, em especial, a paterna. O que você carrega da sua infância mineira no seu trabalho? E da relação com o seu pai?

Marilda Castanha – A relação pai e filha era a minha intenção desde o início. Foi esse o objetivo e a condução do trabalho, como citei anteriormente. Não quer dizer que nego ou omito a relação materna, de modo algum, mas o "recorte" que eu queria dar no livro era esse. Há a presença da mãe, sim, amorosa, doce e serena (como é, de fato, a minha mãe), mas o que queria era lançar uma luz, ou mesmo um  "holofote", nesse personagem masculino. E é um livro que tem mais uns dois personagens: o afeto e a saudade. E não tem jeito, para falar desses sentimentos, a gente esbarra (ou evoca) o que foi vivido. Minha infância permeia o livro, sim. Ela está lá, na jabuticabeira em flor, no quintal com horta, no cachorro, no galinheiro, nos passeios de trem para cidadezinhas próximas a Belo Horizonte, aos domingos. E na presença constante das montanhas, claro! Essa "mineirice" não tem jeito, não nos abandona. E quanto à relação com o meu pai, costumo dizer que as histórias não são para solucionar nada. Mas eu precisava falar de uma vida vivida!  Ao finalizar esse livro (depois de chorar muito), vi que eu precisava  transformar o luto, que eu vivia, em alguma coisa. Transformei em um livro.

 

É um livro que também aborda poeticamente a questão do tempo. O que é o tempo para as crianças? O que é o tempo para quem cria?

Marilda Castanha – Para uma criança, a construção da ideia do tempo é na verdade uma grande confusão. Lembro quando meus filhos, ainda bem pequenos, não sabiam dizer que algo acontecera no "ontem" ou aconteceria no "amanhã". O futuro também era algo impalpável. Meu filho Nino custou a entender a expressão "depois de amanhã". Dava um nó na cabecinha dele. Acho isso, além de ser poético, muito significativo. Mostra que, para uma criança, só o tempo presente importa. Mas com as perdas, mudanças e também conquistas que ela irá viver essa percepção muda. Tanto no próprio corpo como no mundo. E aí eles precisam nomear o "quando": quando eu era menor, quando eu ainda andava de bicicleta de rodinhas, quando eu não sabia ler, quando meu avô estava vivo... O livro, através das imagens, apresenta isso. Mostra que o pai envelhece, que a menina vira adulta e que ficam lembranças, muitas lembranças, tudo num passar de páginas (outra metáfora). Há muito tempo ouvi, numa palestra, um escritor de ficção científica dizer que de tudo o que vivemos noventa por cento é passado, é narração, é coisa vivida. Estou aqui escrevendo este texto, mas no minuto seguinte ele se torna parte do passado. E eu vou dizer: escrevi para você! Achei incrível quando ouvi isso porque nunca tinha parado para pensar: vivemos muito mais de nossas memórias do que do tempo presente!

 

Poderia comentar sobre sua palheta de cores neste trabalho? E, falando de cores, qual seria a cor do tempo? E da saudade? Infância tem cor?

Marilda Castanha – No início, queria ilustrar todo o "A quatro mãos" em sépia ou no máximo em preto e branco, como se fosse um álbum de retratos antigos. Fiz até alguns estudos assim. Fiquei meses com essa ideia fixa (o livro levou mais de três anos para ser finalizado). Achava que sépia seria o ideal para dar ideia dessa cor do tempo, de algo que passou. Mas aí veio um pensamento: minha  infância está nas fotos, registrada em preto e branco, mas eu não vivi nada disso em p&b nem em sépia, muito menos com cores desbotadas. Quando percebi essa diferença pensei, vou fazer tudo colorido, vibrante, pois o que vivi não foi com a cor do passado! E aí vieram as cores do livro. Quanto à cor da infância, acho que depende do que vivemos. Tenho vários momentos que lembro com cores alegres, tem outros que são cinzentos, tristes mesmo. Nada é de um jeito só, e não foi um paraíso o tempo todo. Já a saudade eu nem sei se tem forma e cor. Só sei que ela embaça os olhos da gente.

 

Você começou sua carreira nas décadas de 70/80. Desde aquela época, o que mudou no cenário da ilustração brasileira? Como era o trabalho do ilustrador/autor naquele período e como é nos dias de hoje?

Marilda Castanha – Pensando e repensando sobre isso, acho que uma única mudança, a conceitual, mudou tudo, da técnica à forma de produzir graficamente o livro. Da consideração que a ilustração (e o ilustrador) tinham (ou não tinham) antes. Quando a forma de pensar a ilustração muda, tudo à volta começou a mudar. Por exemplo: a ilustração começava e terminava no espaço de uma página. Ali ela se referia ao texto, pontual. Com a mudança conceitual de considerar que a imagem é narrativa e que livro é um objeto sequencial por excelência, a imagem não se encerra mais numa única página, não está presa somente ao texto. O ilustrador poderá contar uma história paralela, ou considerar a virada de páginas, a dobra, o grampo, a numeração, a margem superior e a inferior, a fonte escolhida, a cor ou a falta de cor...Tudo, tudo, tudo pode ser, na concepção do ilustrador, um elemento importante para a interpretação do livro. Quanto à técnica, há uma outra mudança conceitual: o ilustrador não precisa mais ser aquele que desenha bonitinho nem de modo figurativo. Ele deve ser expressivo. E o ilustrador, no processo todo, vai aprofundar não só um olhar e uma atitude mais criativa, mas também mais autoral.  No fundo essas considerações perpassam o livro ilustrado, ou o picture book. E isso não quer dizer, de forma alguma, que o ilustrador irá competir ou desconsiderar a importância (enorme) do texto literário. Muito pelo contrário. Uma outra característica disso tudo é que todas essas mudanças começaram de forma intuitiva, no final dos anos 80 e no início dos anos 90. Depois é que o pensamento sobre isso foi se sistematizando, se fortalecendo e hoje vemos livros ilustrados, brasileiros, belíssimos.

 

Angela Lago, esta querida ilustradora que nos deixou tão repentinamente, certa vez falou para você ilustrar como artista plástica. O que a literatura infantil tem a ganhar com esse conselho? E você?

Marilda Castanha – Sim, ela me disse isso, e eu recebi o conselho não como uma crítica ao meu trabalho de ilustradora e sim como uma observação coerente com o que a gente mais busca (na vida e na arte): uma  personalidade, uma assinatura. Foi no início dos anos 90, e eu ainda trabalhava só com aquarela, na ilustração. Fiz uma exposição de artes plásticas em BH, numa galeria, onde eu misturava acrílica, aquarela, colagem, quadros grandes, carimbos, e ela foi à mostra. Quando nos encontramos, ela me disse que eu devia ilustrar como artista plástica. É engraçado, pois o artista plástico não pensa em sequência, em virada de página (uma das questões em que a Angela foi precursora e mestra). Nas artes plásticas, cada quadro está resolvido em si mesmo, no próprio quadro. Mas, na época, entendi que Angela estava dizendo que eu deveria, na ilustração, ter a liberdade que tive naquela exposição de artes plásticas. Sem estereótipos, rótulos e predefinições. E que eu deveria ousar, experimentar. Isso foi ótimo para mim. Mas confesso que ainda quero (e espero) fazer um livro livre, totalmente amalucado, bem "artes plásticas". Tomara que eu consiga!

 

Você já foi premiada no Brasil e também no exterior. Seu trabalho tem uma palheta bem brasileira, mas ao mesmo tempo parece alcançar uma universalidade. Poderia comentar um pouco sobre essa questão regional X universal na sua obra?

Marilda Castanha – Quando participei, em Bratslava, de um ateliê de ilustração, o professor, eslovaco, pediu para que cada um desenhasse sua floresta. Lembro que o meu desenho não tinha nada de floresta. Era urbano e barroco (se é que algo pode ser assim, urbano e barroco!). Por causa da minha mineirice, saiu assim. Mas, ao perceber que sou uma confluência de culturas e que eu não tinha representado isso, voltei de lá com um olhar crítico sobre minha própria postura, cobrando do meu desenho (e de mim mesma) uma identidade. Com influências étnicas, de raízes de matrizes indígenas e africanas. Mas não queria ficar marcada como uma ilustradora só de temas específicos. Talvez o desafio de ser regional seja este: o de não limitar as possibilidades. Ter raízes é ter tradição, memória, respeito pela sua cultura. Mas sem que isso seja um receituário, um manual para ser seguido. Agora, se o meu trabalho alcança uma universalidade, não sei bem dizer. Só o outro, do outro lado do mundo, é que pode mesmo dizer.

 

Topa entrar numa brincadeira? Que tal completar as frases abaixo?

Uma imagem vale mais... quando nós nos dispomos a dar sentidos a ela.

O ilustrador é aquele que... acha que todos os livros já foram feitos, e só falta um: o próximo! (E abro um parêntesis para dizer que essa frase não é minha, e sim do Nelson Cruz. O "direito autoral" dessa frase é dele, mas acho tão perfeita, que não resisti!)

A matéria-prima das palavras é… a  necessidade humana de nomear, registrar, comunicar. Todos nós vamos embora um dia. Por isso a necessidade de deixarmos nossos "registros". Sejam eles em forma de desenhos, cartas, anotações, histórias e...  (por que não?) livros.

***

Para saber mais sobre a obra de Marilda Castanha, leia também: O delírio imagético de Brás Cubas

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