9 vezes em que os cabelos crespos foram símbolo e resistência

29/07/2022

Ah, se os cabelos falassem… Mas eles falam! E revelam muito mais do que identidade pessoal e moda. A textura, o estilo e os penteados contam histórias sobre um povo e seus costumes, suas lutas e sua coragem. No livro Manual de Penteados para crianças negras, da Companhia das Letrinhas, Joana Gabriela Mendes e Mari dos Santos trazem o contexto e informações importantes para os pequenos entenderem e poderem contar com orgulho a origem de seus penteados, que está ligada à sua própria origem, aos seus ancestrais. Elas mostram também como e quando os cabelos crespos foram símbolos de resistência e de identidade para movimentos sociais e culturais.

Quer ver algumas das vezes que os cabelos afro falaram ao longo da história? Confira algumas curiosidades que estão no livro Manual de penteados para crianças negras e também no livro Hair story - Untangling the roots of black hair in America, de Lori Tharps e Ayana Byrd, e fornecidos pela pesquisadora Anita Maria Pequeno Soares (doutoranda da UFPE). 

Capa do livro Manual de penteados para crianças negras

 

1. De onde vem o cabelo crespo?

O cabelo com textura afro pode ter surgido por uma necessidade adaptativa dos homens. Algumas teorias sugerem que lá atrás, quando todo mundo vivia sob o sol escaldante e temperaturas altíssimas no continente africano, antes de se espalhar pelo mundo, os fios em formato de espiral eram densos, mas também não ficavam grudados entre si ou na raiz, protegendo o couro cabeludo do sol, ao mesmo tempo em que permitiam a circulação do ar. Ou seja, os cabelos crespos diziam algo como: “Eu vou te proteger e te ajudar a seguir em frente, em evolução”. 

Leia mais: Entre meninas e raparigas: uma conversa sobre origem

 

2. “Eu falei Faraó”

As tranças, de diferentes estilos, foram usadas ao longo da história por diferentes povos para criar identidade cultural. As mulheres Mangbetu (Congo) amarram as tranças em formato de cesta e decoram com agulhas de ossos. Entre os Massai (Quênia e Tanzânia), a trança só é usada pelos homens. Entre algumas mulheres Fula, o costume é enfeitar as tranças com moedas para simbolizar riqueza (ou botões, nas famílias mais pobres). Uma das imagens mais antigas de uma trança, segundo o Manual de Penteados para Crianças Negras, foi descoberta em um cemitério egípcio perto do rio Nilo e tem cerca de 30 mil anos. A famosa Grande Esfinge de Gizé, também no Egito, tem tranças do tipo boxeadoras.  

LEIA MAIS: Narrativas afrocentradas e sua importância para crianças negras e crianças brancas

 

3. Me mostra teu cabelo, eu te direi quem és

Em grande parte dos países africanos, os cabelos e os penteados identificavam de onde a pessoa veio, se é homem ou mulher, se já pode casar, se está passando por um processo de luto, se acabou de ter um bebê e muito mais. Quando os homens da tribo Wolof (região do Senegal e da Gâmbia) iam para a guerra, eles usavam um estilo de cabelo trançado. Quando uma mulher estava de luto, ela deixava de arrumar os cabelos. Além disso, muitos acreditavam que, por ser a parte mais alta do corpo, a cabeça e os cabelos eram um condutor para a interação espiritual com Deus. 

 

4. Raspando a história

Com a escravização dos povos africanos e a diáspora para os outros continentes, houve também a intenção de apagar a história e a identidade desses povos. Uma das primeiras atitudes de quem escravizava uma pessoa era raspar a cabeça dela. Dessa forma, ninguém saberia quem era, de que grupo vinha e qualquer outra informação sobre aquela pessoa. 

 Leia mais: 10 livros para viajar sem sair do lugar

Ilustração das tranças boxeadoras no Manual de Penteados para Crianças Negras

Ilustração do livro Manual de penteados para crianças negras, que traz informações históricas e ensina o passo a passo para fazer os penteados

 

5. Rastafári

Nos anos 1930, um movimento antirracista e anticolonial, com cunho religioso, surgiu e se tornou um símbolo de liberdade dos padrões estéticos brancos. Os Rastafári usavam dreadlocks e elogiavam a pele negra e a “beleza natural”. Os dreadlocks representavam uma relação entre a aparência “natural” e a África, como uma maneira de reinterpretar a narrativa bíblica que identifica a Etiópia como a Terra Prometida. Apesar da conotação inicial religiosa, os dreads se popularizaram mais tarde em grande escala, sobretudo com o sucesso crescente do reggae.  

 

6. Black is beautiful

Durante a política oficial do apartheid na África do Sul (1948-1994), que segregava negros e brancos de maneira violenta, um grupo de estudantes decidiu se organizar nos anos 1970, estudar os problemas históricos e propor soluções contra a opressão e, assim, criou um conceito libertário chamado Consciência Negra, que virou movimento organizado. Foi um movimento de luta contra o apartheid e de valorização que se destacou pelo lema “Black is beautiful”. A valorização da estética negra esteve fortemente presente nessa militância, inclusive nos cabelos, que passaram a ser usados de maneira natural, para cima, em estilo afro. Essas ideias extrapolaram as fronteiras sul-africanas e passaram a influenciar a organização dos negros em vários outros lugares…

Ilustração de Black Power do livro Manual de Penteados para crianças negras

No Manual de penteados para crianças negras, as autoras falam de movimentos culturais e sociais como o Black Power e ensinam a fazer o penteado

 

7. Direitos civis, Panteras Negras, Black Power: efervescência

… como os Estados Unidos e, inclusive, o Brasil. Entre as décadas de 1960 e 1970, a população negra passou também a se organizar politicamente, o que impactou na valorização estética das raízes africanas. Nina Simone, Angela Davis, Abbey Lincoln, James Brown foram alguns dos expoentes da defesa dos direitos civis para a comunidade negra na América. Surgiu também o movimento cultural e comportamental norte-americano, embalado pelo slogan “Black is beautiful” e pelo Black Power, que questionava a ordem simbólica dominante. Até então, as características físicas associadas aos negros eram consideradas esteticamente inferiores. Também foi na década de 1960 que se organizou o partido político Panteras Negras, em defesa da comunidade afro-americana, nos Estados Unidos. O grupo surgiu com o intuito de combater a violência policial contra a população negra e depois passou a advogar pela autodefesa armada. O cabelo afro era, então, um símbolo de resistência, empoderamento e orgulho. 

Leia mais: 10 livros para conhecer a cultura africana

 

8. Representatividade, sim!

Desde o movimento Black Power, os cabelos crespos passaram a ganhar popularidade, tendência que continuou se expandindo em 1970, 1980 e 1990. Com os movimentos sociais, começaram a surgir também mais espaços de beleza voltados especificamente para cuidar dos cabelos crespos, o que colaborou com o reforço do discurso afirmativo e valorizador da negritude. Além disso, em 1996, foi lançada a revista Raça Brasil, que foi um marco para as mudanças dessa época, que indicavam a força da identidade. A publicação colaborou para derrubar ideias cristalizadas no mercado editorial, como a de que revistas com negros na capa não vendem.  

Angela Davis/ Crative Commons

Foto da escritora, ativista e professora estadunidense Angela Davis

 

9. De volta às raízes

Essa parte da história ainda está em andamento e é a que estamos testemunhando em nossa época. Quando novas técnicas - menos agressivas - de alisamento e relaxamento surgiram, como as escovas progressivas e o alisamento japonês, o liso voltou a ser moda. Entretanto, logo após os anos 2010, muitas mulheres voltaram a usar o cabelo natural, tanto pela valorização do crespo, como por terem se cansado de serem “reféns” dos procedimentos químicos. Influencers como Rayza Nicácio passaram a inspirar várias pessoas a utilizarem o corte conhecido como “big chop” e fazerem a transição capilar, esperando os cabelos crescerem na textura natural, assumindo-a e estilizando-a. 

Fontes: Manual de penteados para crianças negras, de Joana Gabriela Mendes e Mari dos Santos; Anita Maria Pequeno Soares, formada com dupla-titulação em Ciências Sociais pela UFPE e em Sociologia pela Universität Hamburg, mestra em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFPE e, atualmente, doutoranda no mesmo programa; Hair story - Untangling the roots of black hair in America, de Lori Tharps e Ayana Byrd.

Compartilhe:

Veja também

Voltar ao blog