Uma incursão aos mundos de Monteiro Lobato

10/04/2019

 

Na cabeça da menina que Lilia Schwarcz um dia foi, a pequena casa onde morava, no Ibirapuera, em São Paulo, era um lugar gigantesco. Lá ela gostava de imaginar que seu próprio jardim era todo o Sítio do Picapau Amarelo, cenário dos livros que ganhava de seus pais. É o que a historiadora relatou no lançamento de Reinações de Monteiro Lobato: uma biografia, escrita em parceria com a professora, pesquisadora e crítica literária Marisa Lajolo. A conversa entre as duas autoras ocorreu no dia 27 de março, no Sesc Consolação, em São Paulo, e contou com mediação de Mell Brites, editora do selo Companhia das Letrinhas.

 

 

Já para Marisa Lajolo, a obra de Lobato ocupou outro lugar em sua infância: era o presente recebido do pai sempre que se portava bem nas idas ao dentista. Foi só na faculdade de Letras que percebeu como o autor era mal visto por seus colegas de turma, considerado um “anti-modernista”. “É curioso lembrar desse meu sofrimento. Todos os meus amigos gostavam de Mário de Andrade ou Graciliano Ramos, e eu gostava do Monteiro Lobato”, conta. Para superar esse conflito, tornou o escritor seu objeto de estudo. 

As duas autoras se encontraram quando Lilia estava escrevendo outra biografia, Lima Barreto: Triste visionário, em 2017. A historiadora estava com uma dúvida sobre um suposto encontro entre Barreto e Lobato e decidiu contatar a especialista no pai de Emília e toda a turma. “Entre conversas e conselhos, saiu a ideia dessa biografia, escrita em primeira pessoa. Foi uma obra escrita à base do diálogo. Sobretudo nesse momento em que nos encontramos tão polarizados, em que transformamos o diferente em inimigo, a diferença nos faz melhores. Foi assim que a gente fez esse livro. Foi uma grande conversa”, conta Lilia.

 

 

Quem também entrou na conversa das autoras foi o ator Sílvio Lefèvre, que interpretou o primeiro Pedrinho da TV brasileira, de 1952, na versão de Tatiana Belinky e Júlio Gouveia. Presente espontaneamente na plateia, ele se apresentou e logo desfiou histórias curiosas sobre as gravações da série, produzida numa época em que não existiam programas gravados. “A gente errava, e estava errado, ponto final”, lembra o ator, que interpretou o menino durante um ano e meio, pois sua mãe achava uma bobagem a ideia de fazer televisão, num tempo em que poucos tinham o aparelho em casa.

Ao final do encontro, uma última pergunta da plateia: qual seria o personagem favorito de cada um dos participantes. Sílvio Lefèvre não hesitou em dizer que era a boneca Emília. Lilia Schwarcz deu uma resposta dupla: Emília e o Visconde de Sabugosa, com quem se identifica pelos livros e pela curiosidade. Marisa Lajolo disse fugir da resposta. Como personagem favorito, citou o criador de toda a turma do Sítio do Picapau Amarelo: o próprio escritor Monteiro Lobato, cujos trechos de Reinações de Narizinho foram lidos com maestria pela atriz paulista Claudia Missura.

 

 

Confira a seguir os melhores momentos do encontro.

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Quem era Monteiro Lobato?

Marisa Lajolo: Sua grande característica foi ter sido uma porção de coisas ao mesmo tempo. Tem um verso do Sá de Miranda de que eu gosto muito: "Comigo me desavim, / Sou posto em todo perigo; / Não posso viver comigo / Nem posso viver sem mim". A vida do Lobato é uma sucessão de entusiasmos por certas causas, de desencantos com essas causas que o encantaram durante tanto tempo, de tentativas profissionais em diferentes campos e sempre irreverente em relação a si mesmo. Isso talvez seja a grande identidade do Lobato, ele ser fiel a ele, mesmo sendo ele uma pessoa volúvel. Talvez seja por isso que ele incomode tanto. Foi censurado por ser ateu, por ser comunista, por ser racista, por ser anti-jeca, por ser a favor do jeca. Não há grande causa pública que alguém não encontre o Lobato do lado oposto àquele em que a pessoa gostaria que ele estivesse. Eu acho que isso é fruto exatamente dessa extrema fidelidade dele às variáveis e nas quais ele acreditava ao longo da vida.

Lilia Schwarcz: O que me chama a atenção é que era uma espécie de contramão. Muitas vezes ele pegava para si causas erradas (causas certas também). É um nacionalista, mas um nacionalista que não tinha medo de errar e, sobretudo, acho que é um grande intelectual nesse sentido. Penso que os grandes intelectuais são aqueles que colocam para si questões importantes, não têm medo de se rever, não têm receio de reaprender. O que é muito interessante no Monteiro Lobato, e eu aprendi muito fazendo essa biografia, é que nós o conhecemos por uma parte muito pequena de sua biografia, que é o Monteiro Lobato escritor de crianças. Até ele chegar lá foi muitas coisas. Foi editor (não deu certo), estudante de direito (não foi lá essas coisas), crítico de arte, teve uma editora, foi um defensor de que o petróleo tinha que ser brasileiro. Foi um autor muito censurado, teve seus livros queimados em Belo Horizonte num momento em que acharam que ele não correspondia aos moldes da sua época. Esteve preso por defender uma política diferente de Getúlio Vargas. Penso que um bom autor é isso: uma caixinha de surpresas que vamos abrindo e descobrindo outras possibilidades, outros ângulos, outras questões para tratar.

 

Literatura infantil e o “tino comercial”

Marisa Lajolo: A experiência de Lobato como escritor para crianças decorre um pouco de ele perceber a questão financeira da literatura e talvez a importância da literatura infantil nesse aspecto de remuneração do escritor. Até hoje a literatura infantil é o gênero literário que permite a profissionalização decente do escritor. E isso, em certo sentido, começa com ele. Ele tem muita perspectiva de público. Há um episódio dele com Lima Barreto, quando o escritor publica Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá. [O livro] não vende, é um fracasso editorial. Lobato diz: “Poxa, mas ninguém sabe quem é o M. J. Gonzaga de Sá. Por que alguém vai comprar um livro que conta a história de uma pessoa que ninguém sabe quem é?”. Tinha essa percepção da importância do título como uma forma de sedução do leitor. Na correspondência de Lobato com amigos escritores, que mandam originais para ele, sempre se dispõe a rebatizar o livro ou o capítulo. 

Lilia Schwarcz: Lembrei de uma frase do Monteiro Lobato. Quando perguntaram a ele: “Qual é o seu livro predileto?”. Ele disse: “Aquele que vende mais”. Lembro também quando eu estava pesquisando a relação de Monteiro Lobato com Lima Barreto, no episódio relativo ao livro Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá, que fracassa, Monteiro Lobato responde: “Também, aquela capa acabou com o livro. Ou seja, ao que tudo indica, Lima Barreto teria indicado uma capa muito gráfica. Lobato tinha mesmo esse tino comercial, essa preocupação com a profissionalização do escritor que ainda é uma questão no Brasil e quiçá no mundo.

 

O sucesso entre as crianças

Lilia Schwarcz: Vários de nós carregamos conosco diferentes Monteiros Lobatos. Tanto que, se fizéssemos uma enquete do personagem predileto de Monteiro Lobato, não chegaríamos a uma conclusão. O máximo que podemos fazer é uma votação. Ele traz um mundo onírico muito grande, um mundo infantil carregado de imaginação. É impressionante como ele devolve isso para nós. Historiadora e antropóloga que sou, acho que tem um lado muito importante nesse momento em que nós vivemos. O Sítio não deixa de ser, por mais que seja um espaço tantas vezes imaginário, um pouco do nosso mundo rural. O Brasil é um país urbano desde os anos 1920, portanto desde o contexto de Monteiro Lobato. E Me parece muito interessante como historiadora que ele traga esse mundo rural que tem uma outra temporalidade. Não podemos esquecer que nos anos 20 é o momento em que São Paulo se vestia como uma metrópole, época não só da invenção, mas da difusão do cinema, do telefone, da pasta de dente, do assento de privada. São várias invenções. E, sobretudo, o Brasil vai se querendo ver muito moderno, o que significa, nesse contexto, de alguma forma, apagar essa fronteira tão porosa que é a fronteira com o nosso mundo rural. Esses livros podem trazer para os professores como são mundos paralelos, mundos que coexistem e que se alimentam muito. Nosso destino não é só ser uma metrópole. Podemos entrar em outras temporalidades. E Monteiro Lobato nos oferece outro tipo de temporalidade.

Marisa Lajolo: Acredito que o aspecto absolutamente irreverente e teimoso da Emília atraía espontaneamente a criança. Talvez o professor nem goste muito disso, mas as crianças adoram a Emília malcriada, a Emília que mostra a língua para a Dona Benta, que xinga a tia Nastácia. Sobretudo nos primeiros livros a Emília é tão malcriada que é absolutamente original na tradição da literatura brasileira ocidental. Por mais que pensemos em Alice no País das Maravilhasou no Pinóquio, Emília é a corajosa que diz à viva voz o que ela quer dizer para quem quem quer que seja. Esse dado torna Lobato extremamente atual e universal, porque talvez, penso eu, isso seja uma característica da infância. Infância e juventude são pra isso mesmo. Para discordar e dizer em voz alta que discorda.

 

Polêmicas

Lilia Schwarcz: Esse foi o aspecto mais bonito da nossa conversa para produzir esse diário. Vocês vão ver que é uma biografia em que nós assumimos uma primeira voz, falamos no lugar do Monteiro Lobato, com muitas licenças poéticas, e trouxemos para o livro debates que carregamos. Monteiro Lobato era um criador de caso. Sobre a pintora modernista Anita Malfatti, numa exposição dela bem anterior à Semana de 1922, ele escreve um artigo posteriormente publicado no jornal O Estado de S. Paulo e depois em livro, chamado Paranoia ou mistificação?, em que começa dizendo: “Algumas pessoas veem de uma forma errada”. Ou seja: ele tenta, de alguma maneira, acabar com esse tipo de olhar [do Modernismo], como já chamou a atenção Marisa [Lajolo]. Isso lhe custou muito caro porque entrou nesse balaio de pré-modernismo. E quem fala em ‘pré’ é sempre um problema. Pré não é o que será e também não é o antes. Fica em um lugar absolutamente sem sentido e sem importância. 

Uma briga que Monteiro Lobato comprou e teve tempo de se corrigir em vida (as outras somos eu e Marisa que assumimos) foi a do Jeca Tatu. Num primeiro momento, ele ataca muito o homem do interior, o caboclo. Ele inclusive usa o nome “urupês”, que vem de “orelha de pau”, em referência a um fungo, à ideia de que eles eram fungos, não trabalhavam. Ele mesmo refaz essa imagem quando diz que o problema é a subnutrição e as condições em que ele [Jeca] vive.

Mas talvez a maior polêmica é essa que estamos vivenciando agora, a questão racial. A ideia de “negra”, “sinhá” são termos que hoje chocam. Na biografia e na coleção da Companhia das Letrinhas, partimos da ideia de que todo texto tem que ser mantido na sua integralidade, que cortar um texto é um ato de censura. Mas nós podemos ajudar o leitor e ajudar os professores destacando essas questões ao invés de tentar colocá-las debaixo do tapete. Enfrentamos essas questões na biografia. Contamos, por exemplo, da publicação do livro O presidente negro, cujo outro nome era O choque das raças e que conta a história de uma eleição nos Estados Unidos. Havia três candidatos: um homem branco, uma mulher branca e um homem negro. Os dois brancos brigam e vence o negro. A história é um pouco estapafúrdia, porque eles acabam fazendo uma espécie de complô em que venderiam produtos para alisar o cabelo, e, quando as pessoas usassem o produto, seriam esterilizadas. Causou problemas na sua época, imagine então hoje um professor lidando com um tema desse. Nós não temos medo de comentar, de explicar o que é o eugenismo, trazer ao livro a famosa carta em que o Monteiro Lobato comenta positivamente a atuação da Klu Klux Klan, que é um grupo de supremacismo branco. Marisa e eu não abaixamos a crítica, ao contrário, nós incluímos a crítica, porque penso que todo autor merece o seu tempo e merece também que possamos entendê-lo com seus ganhos, problemas e contradições.

Marisa Lajolo: É interessante pensarmos essa questão racial do Lobato voltando um pouco à questão do tino comercial dele, no momento em que ele errou completamente, escreveu esse livro pensando no mercado norte-americano. Foi às vésperas de ele ir para os Estados Unidos. Achou que ia ser um best-seller, que ele ia enriquecer, fundar uma editora nos Estados Unidos. Fundou nada. Ele não conseguiu nem fundar esse livro nos Estados Unidos, nem fundar editora, nem coisa alguma. Mas acho que esse livro precisa ser lido por várias razões. A mais importante delas, e talvez a mais contemporânea, é que, como a Lilia comentou, a esterilização dos negros norte-americanos era consequência da despigmentação e do alisamento do cabelo, ou seja, era com uma vontade de apagar as marcas identitárias físicas do negro. Toda vez que eu me lembro do Michael Jackson eu me lembro dessa história. Lembro que, num certo sentido, o Lobato estava certíssimo se eu pensar, por exemplo, dos movimentos negros do Black is beautiful e da importância disso. E da importância da legitimação, da beleza negra sem se branquear para ser bonito. Por outro lado, Lobato escreveu isso antes de ir para os Estados Unidos, nos anos 20. Lobato morre em 48. Em 47, foi encenada uma peça em Salvador, na Bahia. Ele escreve uma carta para um colega, chamado Vladimir Guimarães, depois de ter ido à Bahia assistir a essa peça. Diz o seguinte: "E o candomblé da Bahia? Nunca uma festa me impressionou tanto. Ainda voltarei aí com mais tempo para estudar o candomblé. Por aqui, vou ler tudo, tudo o que existe sobre o assunto. O candomblé da Bahia dá vontade da gente ser negro, bem preto". Vejam, ele escreve isso em 47. Só isso.

Lilia Schwarcz: O tema racial é incontornável da nossa agenda, temos depoimentos de pessoas que dizem terem sofrido muito lendo Monteiro Lobato e que os colegas devolviam a eles a imagem da tia Nastácia. Claro que são visões que podemos concordar ou discordar, mas penso que muitas vezes essas notas vêm no sentido de, em primeiro lugar, não esconder o problema. Isso é muito importante. Durante muito tempo, no Brasil, o tema racial foi um tema basicamente silencioso, e onde há silêncio, em geral, há muito barulho. O segundo aspecto é: vamos debater, vamos falar desses temas. Se esse é um tema novo, eu acho que todo bom livro é relido de muitas maneiras em outros contextos. Cada contexto pergunta ao mesmo livro novas questões. Isso faz um clássico ser um clássico. Como diz Umberto Eco, é um livro que eu estou sempre relendo, por mais que eu já tenha lido muitas vezes. A nossa preocupação com essas notas não é dirigir o professor, ao contrário. É mostrar, nesse momento em que nós vivemos, com os nossos impasses, como é que nós lidamos com essas questões.

Marisa Lajolo: Concordo em gênero, número e grau e queria fazer dois comentários extremamente positivos em relação à edição da Companhia das Letras: a manutenção do original como Lobato publicou na última edição que ele viu em vida. Então, se tia Anastácia era negra beiçuda, ela continua a ser negra beiçuda. Mas, tendo em vista que isso com certeza causa incômodos, tentamos minimizar um pouco o caráter professoral das notas de rodapé. Elas são um diálogo entre a Emília e uma outra personagem do livro. Digamos que é também romanceada, também fantasiada a discussão sobre aquilo que seria um tema polêmico. Então, por exemplo, a Emília diz: “Como? negra beiçuda? Isso é um absurdo, não se deve chamar ninguém assim, mas é assim que se chamava porque...” Acho que foi uma boa saída.

Lilia Schwarcz: E na biografia, a gente deixa. Vou ler um trecho: ‘Um de meus personagens, estou sabendo, é motivo de muita discussão hoje em dia: a querida tia Nastácia, uma cozinheira negra que Emília muitas vezes chama de negra beiçuda, uma expressão que hoje seria, com todas as razões, inaceitável. E não é que foi a tia Nastácia que fez a Emília? O Brasil em que nasci e vivi era outro. Nesse Brasil de antigamente, prolongavam-se o preconceito e o racismo construídos ao longo dos muitos séculos de escravidão. Éramos, sempre fomos, e talvez nesse tempo seu a gente ainda seja, uma cultura racista, preconceituosa. Eu não percebia isso naquele momento. Nem eu, nem muitos outros brasileiros. E não estou me desculpando, não”.

 

Sobre o texto em primeira pessoa

Marisa Lajolo: Só tínhamos duas escolhas, terceira [pessoa] ou primeira [pessoa]. Tiramos no par ou ímpar e optamos pela primeira [risos].

Lilia Schwarcz: Também serviu para dar um tom mais informal para a biografia, menos pomposo. E serviu para que colocássemos as nossas ideias junto às de Monteiro Lobato.

Marisa Lajolo: Ao mesmo tempo, sempre duvidávamos se seríamos capazes de fazer uma voz que parecesse remotamente à de Monteiro Lobato. Ele escrevia tão bem, eram tão características as coisas dele e, ao mesmo tempo, isso também representaria uma inovação no gênero biografia. É como se fosse uma autobiografia, mas não é uma autobiografia. Até brincamos no começo do livro, como se fosse uma epígrafe. Tem um livro que se chama Memórias da Emília, e brincamos que a Emília, quando vê que o Lobato escrevendo as memórias dele, ela diz: “Pô, ele aprendeu comigo. Eu é que vivia escrevendo”. Nos divertimos muito fazendo isso.

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