Uma cruzada política na literatura infantil

03/04/2019

 

Existe hoje no Brasil uma verdadeira cruzada política contra os livros infantis. É assim que o sociólogo José Ruy Lozano, autor de livros didáticos e coordenador pedagógico geral do Colégio Nossa Senhora do Morumbi, define a equivocada acusação de “doutrinação ideológica” que acomete obras voltadas à infância na contemporaneidade cujo conteúdo valoriza a autonomia do indivíduo e a abertura de espaço para a diversidade, no contexto de uma sociedade mais plural, cheias de heroínas nada indefesas, protagonistas negros empoderados, novos arranjos familiares e questões sobre bullying, sexualidade, entre outros. 

Nenhum discurso é passível de uma roupagem política. Nos enredos do "era uma vez", por exemplo, em que princesas aguardam a chegada do príncipe maravilhoso, celebra-se o regime monárquico, a instituição do casamento ou outros assuntos ligados à moral de séculos passados. Doutrinação ideológica nos contos de fadas?

“Nunca ninguém chamou assim e eu não chamaria. Por quê? Porque uma coisa é você identificar e reconhecer que existem pressupostos políticos nos livros tradicionais, evidenciá-los e debater sobre eles. Outra coisa é promover uma cruzada contra eles. É o que está acontecendo hoje. O que está se propondo hoje não é um debate sobre intencionalidades políticas na literatura infantil, o que está sendo proposto hoje é uma condenação moral, política, dizendo que esses livros foram propositalmente produzidos para doutrinar as crianças”, diz o sociólogo, destacando que no centro do debate está em jogo uma "disputa de valores". 

Tal discussão acerca do viés político no cerne da literatura infantil contemporânea, segundo o sociólogo, insere-se num debate maior: o conflito em torno da escolarização. “Não é só a literatura infantil que está na mira, a escola está na mira, a educação está na mira.” E isso porque a “educação é o lugar em que a criança sai do seio da família, portanto, sai da vida privada e vai para vida pública.” A mira é a escola, lugar público de questionamento, criticidade e aceitação do diverso.

 

Ilustração Marcelo Tolentino

 

Para saber mais sobre literatura as relações entre infância, política e educação, confira abaixo a entrevista feita com José Ruy Lozano, que, ao falar por telefone, tratou do tema de modo didático e direto.

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Poderia comentar um pouco a intersecção entre política, educação e literatura no contexto contemporâneo, em que livros sobre determinadas temáticas são perseguidos e censurados, por exemplo?

Acho que a primeira coisa que a gente precisa fazer até antes de abordar o contemporâneo é deixar claro que a literatura infantil ou infantojuvenil, como queiram, tem pressupostos pedagógicos. Ou seja, geralmente, ela é lida na escola ou pelas famílias com o intuito de não apenas produzir encantamento, mas também com a premissa do ensinamento. Foi assim ao longo da história, desde as fábulas de La Fontaine; na verdade desde as fábulas de Esopo. E a literatura infantil sempre abraçou os pressupostos que são de ordem pedagógica, de valores que devem ser transmitidos para as gerações mais novas. Isso sempre a acompanhou.

Qual é a diferença para o contexto contemporâneo? É a disputa sobre esses valores. Então, nas histórias tradicionais, nos contos de encantamento tradicionais, há valores arraigados na moral tradicional. Qual é o valor que está socialmente implícito na história de Chapeuzinho Vermelho, que desobedece a mãe e dá errado? As crianças não devem desobedecer papai e mamãe, certo? Em Cinderela e seu príncipe idealizado, há uma valorização da sociedade de corte, monárquica, que, nos séculos XVII, XVIII e XIX, traziam um valor político estabelecido.

O que acontece contemporaneamente é que o mundo experimentou uma mudança desses valores. E a literatura infantil não é imune a isso e passa a trabalhar com um código de valores e de ideias distinto desse código da tradição, da literatura infantil lá de trás. Então, veio mais recentemente para a literatura infantil histórias que valorizam a independência, a autonomia da criança, a diversidade sóciocultural, ideias e concepções da sociedade contemporânea diversa e plural. E A disputa em torno desses valores, mais tradicionais ou mais contemporâneios, veio junto.

Agora, a literatura infantil sempre abraçou pressupostos e valores que estão socialmente e politicamente estabelecidos. O que mudou foi que a sociedade se diversificou e, quando essa diversidade vem pra literatura infantil, aí você tem um choque. Por quê? Porque a disputa política vem também para dentro da escola, para o próprio fazer literário.

 

A diferença entre a intencionalidade político-pedagógica da literatura infantil, que sempre existiu, e da doutrinação ideológica seria algo voltado a um viés mais partidário?

Não, eu não concordo com essa afirmação. Por quê? Porque o que chamam de doutrinação ideológica, na verdade, é detecção no enredo, nas narrativas de ideias, princípios e valores que estão em mudança na sociedade. Os que não concordam com essas mudanças chamam isso de doutrinação ideológica. Ora, seria uma doutrinação ideológica dizer que a idealização do príncipe e da princesa, portanto, é uma idealização da sociedade de corte, da vida monárquica, no século XVII? O príncipe sempre perfeito, né? A menina pobre que se casa com o príncipe maravilhoso, um herói lindo, bonito, de bom coração, de bom caráter. Ora, isso também representa uma viés político. O viés político sempre existiu. O que não havia era essa ideia de que um grupo de educadores, intelectuais e escritores estaria coordenando esforços para doutrinas, no plano cultural, as crianças nas escolas.  

E essa ideia é falsa, pois todo discurso, inclusive o discurso da literatura infantil, éum discurso ideológico. Ele parte de um lugar com valores e percepções que são construídos histórica e socialmente. Então, eu perguntaria a esses que acusam um livro, por exemplo, que promove o protagonismo de uma criança negra e acham que isso, a valorização da cultura africana, por exemplo, é uma doutrinação ideológica. E a valorização da sociedade de corte? Nas histórias tradicionais, não é, não seria uma doutrinação ideológica? Nunca ninguém chamou assim e eu não chamaria. Por quê? Porque uma coisa é você identificar e reconhecer que existem pressupostos políticos nos livros tradicionais, evidenciá-los e debater sobre eles. Outra coisa é promover uma cruzada contra eles. É o que está acontecendo hoje. O que está se propondo hoje não é um debate sobre intencionalidades políticas na literatura infantil, o que está sendo proposto hoje é uma condenação moral, política, dizendo que esses livros foram propositalmente produzidos para doutrinar as crianças. 

 

Relembrando o que vivemos em 2018, por que os livros da literatura infantil foram escolhidos como arma de promoção eleitoral? 

A questão da literatura infantil se insere numa disputa maior: o conflito em torno da escolarização. Não é só a literatura infantil que está na mira, a escola está na mira, a educação está na mira, todo o setor educacional está na mira do governo e desses grupos que tomaram conta do governo. Então, veja você, a literatura infantil, nesse sentido, seria mais um elemento daquilo que esses setores identificam como um grande esquema de doutrinação, envolvendo o próprio currículo das disciplinas escolares, a maneira como o professor dá aula, as leituras propostas. 

Então, quer dizer, existe um problema aí que é com relação à educação e com relação ao papel que a educação exerce. E qual é o problema que eu vejo? A educação é o lugar onde a criança sai do seio da família, portanto, sai da vida privada e vai pra vida pública. Espaço em que se preparar pra viver no coletivo, na sociedade, com regras que são impessoais, com relações que não são relações familiares e afetivas, ela vai viver num ambiente parecido com um ambiente público, com a vida coletiva social. O problema desses setores da sociedade é com a vida coletiva. Muitas famílias e muitos setores políticos não querem que as crianças entrem na esfera pública, gostariam muito que elas permanecessem na esfera privada, dos vínculos familiares, próximos. Acho que é esse o problema. Nós estamos esquecendo do próprio papel da escola e do próprio papel da educação – e a literatura infantil se insere nesse meio, está no bojo desse debate. A gente precisa preparar as crianças para saírem de casa, o que significa tomar contato com ideias diferentes, com pessoas diferentes, com coisas que a minha família não pensa, em discutir, debater, mudar de ideia, voltar...

Enfim, para determinados setores da sociedade, tudo isso é visto como algo negativo. É interessante notar que todo esse debate vem acompanhado de um crescimento da demanda por homeschooling,ou seja, educação em casa. Há, no Brasil, um movimento organizado para instituir homeschooling justamente porque existe essa recusa do público, essa recusa da vida coletiva. A meu ver, essa recusa existe porque a vida coletiva implica necessariamente diversidade, pluralismo. Tem gente que não gosta de você, tem gente que pensa diferente de você, tem gente que é de uma religião diferente da sua, e a escola é um lugar onde tudo isso convive. É isso que as pessoas querem evitar. Especialmente, alguns segmentos mais identificados com a direita do espectro político.

 

Você acredita que a maneira como a literatura infantil é ensinada nas escolas contribui com o fortalecimento desse discurso eleitoral?

Não. Falo do lugar de um professor, lemos histórias para desenvolver habilidades de leitura, para perceber implícitos, para fazer inferências. Ou seja, além de obviamente constituir o hábito de leitura, o intuito é ampliar o vocabulário da criança, fazê-la ler textos mais complexos, pensar sobre o que lê, se encantar com as histórias. Essa é a nossa intenção. E é por isso que as escolas nunca abandonaram os contos tradicionais até hoje. Então, a escola lê Chapeuzinho Vermelho, mas a escola também lê histórias contemporâneas. Histórias que mostram situações de bullying, situações de convívio entre os diferentes, situações de estruturas familiares diferentes, por que não? Sem abandonar as histórias tradicionais. 

Nunca houve, por parte das escolas, o abandono dos contos tradicionais. Mas, se a nossa intenção é construir hábito de leitura, é ampliar a capacidade do aluno ler, é fazer o aluno pensar sobre o que está lendo, não é promover agendas políticas. Professor de português ou professor de alfabetização do fundamental, quando faz uma indicação de leitura, ele quer isso, ampliar a capacidade de leitura. É por isso que nós jamais abandonamos os clássicos. Na escola se lê de tudo. 

 

Em um dos seus textos, você comenta sobre como a elite brasileira odeia Paulo Freire, mas, mesmo assim, matricula seus filhos nos colégios influenciados por ele. Para você no que se sustenta esse descompasso?

Num desconhecimento sobre a obra do Paulo Freire. Paulo Freire virou muito mais um xingamento, né? Ninguém tem a dimensão do que ele realmente escreveu, o que efetivamente defendia, a quais correntes pedagógicas e de pensamento ele se filia. Paulo Freire está no bojo de uma discussão sobre pedagogia e renovação escolar nos anos 60, 70, que reúne também outros nomes de uma pedagogia mais progressista e são a base de muitas escolas de elite. E que não tem nada a ver com ensinar marxismo ou ideias afiliadas ao comunismo, ao marxismo. Na verdade, o que se pretende é que o aluno pense com autonomia. Um dos clássicos de Paulo Freire chama-se Pedagogia da autonomia, tudo o que ele mais queria é que as pessoas pensassem com a própria cabeça – e justamente ele está sendo tachado como doutrinador. Se alguém tivesse contato direito com as ideias dele, com o que ele escreveu, não teria falando essas coisas. Pode até discordar, tudo bem. Era um autor de esquerda? Sim! Teve um posicionamento político ligado à esquerda, lógico. 

 

 

 

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