Um manifesto em prol da fantasia

26/04/2017

Por Sílvia Zats

 

Lembro-me perfeitamente do telefonema da Maria Emília Bender, na época editora da Companhia das Letrinhas, surpreendendo-me ao dizer, do outro lado da linha: “Se você topar, a gente faz O Clube dos Contrários!”. Se eu topar? É claro que eu topava!

Eram os idos de 1998, eu já havia escrito algumas coisas, entre roteiros, contos e mesmo alguns infantis, mas nunca publicado. Na maior insegurança de autora iniciante, tinha tirado a sorte grande! O Clube havia sido recusado por algumas outras editoras, mas finalmente achava seu lugar ao sol e logo no seio de uma das melhores casas do ramo. Edição bem cuidada, diagramação caprichada, ilustrações incríveis da Suppa... Ver o livro pronto trouxe muita emoção, nem parecia que aquilo era obra minha. Acho que todo mundo que escreve já teve essa impressão, ao testemunhar um texto de sua autoria proclamar sua independência, criar vida própria e ganhar o mundo.         

O livro conta a história de Juca, um menino questionador procurando entender o mundo à sua volta. Um mundo que à vezes parece cheio de obrigações e regras arbitrárias e incompreensíveis aos olhos de uma criança. Um mundo que encanta e atiça a curiosidade, com suas leis de funcionamento mágicas e misteriosas. Um mundo que às vezes é ameaçador, quando a gente se sente só e incompreendido. Um mundo de maravilhamento com a beleza das pequenas coisas e com as incessantes descobertas pelo caminho. Juca é um menino tentando se encontrar, e encontrar seu lugar nesse mundo. 

Voltando um pouco mais no tempo, tento me lembrar: como foi mesmo que tudo começou? O ponto de partida do livro foi algo muito simples e pontual. Sentada no meu escritório, olhando em volta e pensando no que escrever, comecei a observar as coisas ao meu redor. Os livros na estante, o abajur sobre a mesa, um grampeador, o porta-lápis, os fones de ouvido, uma cadeira... Como será que uma criança olha para tudo isso? Será que as coisas são exatamente como as vemos? Será que o mundo é exatamente como o vemos? Será que toda pessoa que olha, por exemplo, para uma cadeira, enxerga exatamente a mesma coisa?

Assim o menino Juca emergiu de dentro da minha cabeça, para compartilhar e dar voz às minhas perguntas. Ao encarar aquela cadeira que estava bem ali na nossa frente, juntos começamos a perceber que as coisas não são o que parecem. Ou pelo menos, não são apenas o que parecem. E a voz crescente  do menino foi falando e contando que de tanto observar as cadeiras de sua casa, um belo dia ele se deu conta de que elas podiam ser usadas e transformadas das mais diversas maneiras. Utilizava uma como escada para espiar as coisas lá no alto da estante, outra era a casa de seus bonecos intergalácticos, uma terceira virava estacionamento de naves espaciais, ou ainda uma poderosa arma com quatro lanças pontiagudas. Porém, no mundo dos adultos, o negócio não é bem assim. As coisas têm nome e sobrenome, assim como propósitos claros. Cadeira serve para sentar. E ponto.

Juca tem espírito transgressor. E qual a criança que não se identifica com isso? A partir desse conceito inicial, o fio da história foi se desenrolando. Uma ideia puxa outra, um personagem convida outro, e assim a rede ficcional vai se formando. Invertendo as sílabas de seu nome, Ju-ca vira Ca-ju. No início, pensa ser o único a se sentir daquela forma. Considera-se diferente dos demais. Contudo, pouco a pouco, cruzam seu caminho os companheiros de jornada, que revelam seus gostos, suas preferências, suas questões íntimas, aquelas que “nunca tinham contado para ninguém”.

Primeiro os amigos do peito, Tobe e Nhobiru, em seguida as meninas, Naliroca e Lamica, e finalmente o pequeno Ãojinho. Decidem então fundar o Clube dos Contrários. Um lugar onde cada um pode se exercer como é. No Clube todos são acolhidos com suas estranhezas e diferenças, desde que compartilhem de uma mesma questão: “Por que a gente tem sempre que fazer as coisas do jeito que os adultos querem?”.

A turminha terá que se haver com a descoberta de que na realidade existem dois mundos. O desafio será encontrar uma forma de conviver com ambos, discernindo claramente o mundo dos adultos do mundo das crianças, o mundo dos contrários do mundo como ele é.

Em 2017, O Clube dos Contrários completa 18 anos, atinge sua maioridade, mas segue sendo uma espécie de Peter Pan, um manifesto em prol da imaginação e da fantasia, uma lembrança de que é possível resistir às imposições do nosso “mundo adulto”, mesmo que seja num lugar bem escondidinho lá dentro da gente. Ao longo de todos esses anos, visitei inúmeras escolas e bibliotecas, onde participei de discussões e conversas sobre o livro, e não canso de me surpreender com a maneira como ele toca as pessoas, adultos e crianças. Sempre me pergunto o que causa esse fenômeno, o que exatamente no livro provoca essa identificação tão imediata. Se disser que sei responder, estarei mentindo, mas posso arriscar uns palpites. Talvez seja um conjunto feliz de fatores.

O livro foi escrito com muita sinceridade, como um mergulho na minha própria infância (que se estende até hoje, pois ainda me considero um pouco criança), minhas dúvidas, meus medos, meu sentimento de ser diferente, a vontade contraditória de não ser igual aos outros e ao mesmo tempo o desejo de ser aceita sendo assim, minha revolta com a ordem estabelecida, e por aí vai. São sentimentos que talvez assolem a todos, em algum nível, em algum momento de sua trajetória.

Acho graça quando me dizem que o livro é revolucionário, ao mesmo tempo em que ele é historicamente adotado por algumas das escolas mais tradicionais. Eu me divirto também quando um pai me diz que após ler o livro o filho foi à escola com a roupa ao contrário durante uma semana inteira... e quando vejo as crianças reinventando seus próprios nomes e criando novas linguagens inspiradas na gualín (a língua criada e falada pelos integrantes do Clube dos Contrários, ou melhor, do Beclu dos Riostrácon).

O Clube é um livro solto e despretensioso, escrito numa linguagem simples e direta, fácil e gostoso de ler. Tudo isso com humor, que para mim é um elemento muito importante. Acredito que a gente tem que se divertir lendo, adoro quando algum livro provoca risadas. Aliás, descobri com os anos que literatura e humor caminham muito bem juntos!

Posso dizer que O Clube foi um divisor de águas na minha vida. O reconhecimento da qualidade do meu trabalho, primeiramente pela editora, que decidiu publicar o livro, e, em seguida pelo público ao qual ele se destinava, que me deu coragem e confiança para seguir adiante e continuar produzindo, cada vez mais. Sim, era isso que eu queria fazer, era isso que me dava mais prazer, e a partir daí comecei a entrever um caminho possível a ser trilhado.

No ano seguinte veio Planeta corpo, depois chegaram Nem tudo está perdido, Viva Terra Viva, Uma peça a mais, Quem sou eu?... os livros foram se intercalando com os filhos e, aos trancos e barrancos, a produção continuou! Posso dizer que a Companhia me lançou como autora e pouco a pouco fui fazendo deste o meu ofício, escrevendo para crianças de todas as idades e até me aventurando com leitores adultos, publicando livros por várias editoras.

A cada vez que eu visitava uma escola, a cada encontro com leitores, invariavelmente alguém me perguntava: “Você já pensou em escrever uma sequência de O Clube dos Contrários?” Minha resposta era sempre negativa, pois para mim aquele livrinho era uma coisa única, fechada e resolvida nele mesmo. Porém, de tanto ouvir aquela espécie de solicitação, a pergunta começou a martelar na minha cabeça. E um dia, conversando com a Maria Emília, a ideia apareceu, en passant. Ela achou ótima e comprou na hora. Logo me pus a trabalhar na sequência e, assim, algum tempo depois (2006), finalmente surgiu Só não vê quem não quer, uma nova aventura com os personagens do Clube, acrescidos de alguns novos amigos. Drope, Laebriga e os gêmeos Loscar e Cosmar vêm engrossar o time. E não é que o resultado ficou bom?

O Clube dos Contrários é um livro que me trouxe muitas alegrias, um filho do qual muito me orgulho. Continuo me emocionando até hoje com mensagens carinhosas de leitores, crianças, jovens, pais, professores, me fazendo acreditar que vale a pena continuar. Longa vida ao Clube dos Contrários e longa vida à Companhia das Letrinhas!

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Sílvia Zatz é autora de 15 livros para os públicos infantojuvenil e adulto. Estudou Comunicação, trabalhou com cinema e design de jogos. Continua buscando novos caminhos para compartilhar suas fantasias com crianças de todas as idades.

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