Um fluxo entre linguagens e memórias

28/07/2018

 

Por Gabi Tonelli e Luísa Cortés

 

 

A viagem pelas palavras continuou no terceiro dia da Flipinha. Chegamos à metade da feira literária, e a programação é intensa e animada. E se as crianças continuam se divertindo com os bate-papos e as oficinas com autores na Central Flipinha, sexta-feira foi o dia de os adultos começarem uma conversa mais profunda sobre linguagens e literatura para crianças.

Na mesa “Como garantir a autoria no livro infantil”, parte da programação da Casa Livre & Nuvem de Livros, que integra a programação paralela da Flip, os autores Roger Mello e Rosana Rios e os editores Rosana Mont’Alverne e Gil Vieira Sales conversaram sobre a situação das literaturas infantil e juvenil nos dias de hoje. A plateia – que lotou a casa! – foi convidada a refletir sobre a autoria de um livro infantil que, segundo os participantes da mesa, é compartilhada. Não só escritor, ilustrador, designer, editor e todos que fazem parte da cadeia do livro, mas também o leitor faz parte desse processo de construção de uma obra literária infantil.

 

 

Em um momento em que a infância e a juventude parecem cada vez menos reconhecidas, os autores de literatura infantil também sofrem com essa desvalorização. Quando Rosana Rios disse que “faz livrinhos”, é exatamente a isso que quis se referir. O “politicamente correto” foi outra questão debatida. A literatura para crianças parece cada vez mais vigiada por “patrulhas de adultos”, que tentam ditar o que as crianças podem ou não ter acesso. Como disseram os convidados da mesa, existe “um olhar colonizador do adulto”. Mas, como afirmou Roger Mello, “O livro é [justamente] a possibilidade do anteparo; o obstáculo que não obstrui”, e ajuda a criança a construir sua própria visão de mundo.

A ilustração também foi um dos assuntos abordados pela mesa. No universo da literatura, muitas vezes um livro com ilustrações é relacionado como uma obra exclusivamente para o público infantil ou para o público jovem, como se a linguagem escrita e a linguagem imagética fizessem parte de universos completamente diferentes e sem nenhuma conexão. Roger Mello ressaltou que “palavras e imagens são a mesma coisa, mas afetam lugares diferentes da nossa abstração”. Enquanto no início da história do livro os livros com ilustrações eram considerados artigos raros e especiais, adquiridos apenas pela população mais abastada, hoje as ilustrações parecem ser classificadas como unicamente “coisas para criança”. O livro infantil devolve a polissemia original do livro e a possibilidade de o leitor interagir com diferentes linguagens ao mesmo tempo.

As diferentes linguagens também foram assunto de outro evento da sexta-feira. Na roda de conversa “Trânsito entre linguagens”, que aconteceu na Casa M.A.R., as escritoras e roteiristas Índigo e Keka Reis, com a mediação da roteirista Patrícia Oriolo, conversaram sobre a adaptação de seus livros para conteúdos audiovisuais e teatro.

 

 

Enquanto Índigo começou como escritora e passou a trabalhar como roteirista para adaptar suas obras literárias, Keka iniciou sua carreira como roteirista e agora está envolvida na adaptação de seu livro O dia em que a minha vida mudou por causa de um chocolate comprado nas ilhas Maldivas para série live action e para peça teatral. Tanto nesses casos como na adaptação do livro de Índigo As aventuras de Glauber e Hilda para animação, algumas mudanças foram necessárias para que as histórias funcionassem nessas novas linguagens.

No caso de As aventuras de Glauber e Hilda, a série de animação recebeu conteúdo extra para que ficasse mais dinâmica e pudesse funcionar em diferentes episódios. O cenário foi expandido, assim como novos personagens foram criados, proporcionando mais cenas de ação, algo crucial para as obras audiovisuais. Diferentemente da literatura, que permite que o leitor saiba as reflexões e os pensamentos por trás da mente de cada personagem, séries de TV, teatro e cinema narram a história apenas por meio da ação das personagens, por isso a necessidade de se desenvolver conteúdo inédito para as adaptações.

Essa não é a única preocupação ao se adaptar um livro para obra audiovisual. Muitas vezes é necessária uma adaptação do conteúdo ao público. Um livro cujo público são crianças mais velhas muitas vezes é transformado em um programa de TV ou em um filme direcionado para um público de crianças mais novas. Isso acaba acontecendo porque muitas vezes a alfabetização digital acontece de maneira mais rápida do que a alfabetização literária, como ressaltaram as três participantes da mesa.

Se existem “patrulhas de adultos” para os livros infantis, elas também estão presentes no mercado audiovisual, especialmente no mercado televisivo. Muitas vezes, inclusive, o mercado literário é menos conservador do que a televisão, o que faz com que também seja necessária uma mudança de alguns dos conteúdos e de algumas das temáticas abordadas durante a adaptação de um livro para cinema ou televisão.

Entre tantas possibilidades de linguagens, os adultos parecem muito mais receosos com a diversidade de temáticas e com maneira como as crianças vão interpretar cada uma das informações – muito mais do que qualquer criança!

Já na Central Flipinha, a prosa foi entre os autores Nelson Cruz, de A Arca de Noé (Companhia das Letrinhas), e Lúcia Hiratsuka, de Chão de peixes (editora Pequena Zahar). Com mediação da crítica literária Cristiane Tavares, os dois escritores-ilustradores contaram que suas obras têm grande influência de suas experiências de infância, seja pelas cenas que ainda povoam seus imaginários, seja pela sonoridade das canções ouvidas naquela época.

 

 

Lúcia Hiratsuka lembrou a oralidade que marcou o seu tempo de menina crescida no interior de São Paulo, numa infância pé na roça. Leu o poema Quintal, de sua autoria: “Na lua do meu quintal / tinha dois coelhos, / que faziam bolinhos. / E eu / esperando… / Mas lá do alto / só vinha a chuva. / Será que os bolinhos / eram de chuva?”. Explicou que, na cultura japonesa, a imagem da lua traz a imagem de dois coelhos preparando o moti, um bolinho feito de arroz. Nos versos, ela também incorporou elementos da cultura caipira com o bolinho de chuva que muito marcou a sua infância.

O carinho pela natureza também é algo que data dos tempos de menina, com a sonoridade das canções que ouvia da sua avó. Ela falava com delicadeza dos movimentos dos pássaros, do sino que tocava na montanha, convidando os netos a voarem de volta às suas casas, assim como as pessoas que, ao fim do dia, deveriam retornar aos seus lares. De seu avô ficou a memória das noites em que saíam para caçar vagalumes, o ritmo das canções que entoavam juntos para chamar os bichinhos para perto.

Mas uma memória muito marcante veio de sua mãe, que teve de estudar escondido durante a Segunda Guerra Mundial, quando o governo de Getúlio Vargas proibiu o estudo de línguas estrangeiras, entre elas o japonês, e a manifestação de sua cultura. Ela contou à filha que naquela época os livros da família tiveram de ser enterrados, o que inspirou Lúcia a escrever Os livros de Sayuri (Edições SM) anos depois.

Já Nelson Cruz contou de suas brincadeiras de rua, em uma cidade sem luz elétrica nem água tratada. Passava o dia a brincar com as outras crianças com elementos simples que encontravam aqui e ali. À noite, acendiam uma fogueira e lá vinham as histórias de assombração, com direito a fantasmas e aos mais diversos monstros, que dificultavam a volta à casa interditada pela escuridão.

Ele contou que esses anos foram o seu verdadeiro “laboratório literário”, que o inspirou na adolescência a perseguir a paixão pelas artes: “Estou hoje na minha infância. Não há um tempo que separa uma coisa da outra”. A liberdade que permeou esses seus primeiros anos de vida também inunda a sua obra, como em No longe dos Gerais (Cosac Naify). No livro em que rememora a viagem realizada por Guimarães Rosa para escrever Grande Sertão: Veredas, uma surpresa: uma anotação do diário de Rosa contava da noite em que diversos vaqueiros tentavam assustá-lo com histórias de fantasmas.

Logo voltaram em Nelson as memórias ao pé da fogueira, com seus jovens amigos. Dali surgiram, então, as inspirações visuais para as ilustrações do livro, a cena toda já montada em sua cabeça. Aproveitou para discutir temas que lhe são caros enquanto artista: a transcendência, o desdobramento do ser humano. Afinal, como disse Alfredo Bosi em O ser e o tempo da poesia, lembrado durante a conversa pela mediadora Cristiane Tavares, “a imaginação nada mais é do que a memória em expansão”.

 
Compartilhe:

Veja também

Voltar ao blog