Silvana Rando ilustra 'A casa', música da sua infância

07/02/2020

Antes de virar uma das músicas que vem marcando a infância de gerações desde 1980, ela foi um poema. E, antes disso, era somente uma casa muito engraçada, que às vezes não tinha teto nem paredes, que foi sendo construída aos poucos pelo arquiteto e artista plástico uruguaio Carlos Paez Vilaró, a Casapueblo. Já sabe do que estamos falando, certo? A canção “A casa”, clássico de Vinicius de Moraes no álbum Arca de Noé, que o músico criou quando ia visitar o amigo no Uruguai, agora virou livro cartonado para bebês e primeira infância. E ganha leitura visual de Silvana Rando, que ilustra essa casa que não tinha nada. Como ilustrar algo que, em sua própria letra, não tem materialidade? E ainda mais em um livro para crianças pequenas?

(Ilustração de Silvana Rando para o livro "A casa")

“Foi um grande desafio. Primeiro, pela responsabilidade de ilustrar uma canção do Vinicius, que fez e ainda faz parte da infância de quase todos os brasileiros. Segundo, que o poema fala de uma casa que praticamente não existe. Parecia mais uma pegadinha”, conta Silvana. Para dar conta do recado, ela recorreu ao humor. A leitura que faz não é a de uma construção, pelo contrário. A casa vai desaparecendo, perdendo partes ao longo do processo, desconstruindo até aparecer de outra forma.

“Fiz uma brincadeira de os pássaros irem, aos poucos, desmanchando a casa dos bichinhos. Na minha cabeça, os pássaros seriam os espertos e os outros animais, os bobos. Assim, justificaria o final da canção: na Rua dos Bobos, número zero.” Silvana lembra que, quando era criança, sentia-se frustrada com as leituras visuais que via dessa música na escola. “As professoras, na melhor das intenções, sempre ‘roubavam no jogo’ e desenhavam casas brancas ou somente contornos.”

A ilustradora que nasceu em 1972 em Sorocaba, interior de São Paulo, e mora atualmente na capital paulista, sempre gostou de desenhar. Hoje, tem mais de 50 livros ilustrados, sendo cinco para a Companhia das Letrinhas – “Meu vizinho é chato pra cachorro!”, “O coelhinho que queria dormir”, "A elefantinha que queria dormir”, “Que semana!” e, agora, “A casa”. Ela está desenhando outro livro da coleção Arca de Noé e tem mais quatro em finalização para 2020, para editoras variadas. Mas é mais conhecida como a “mãe” do Gildo, um elefantinho simpático e medroso, que rendeu a ela o prêmio Jabuti de ilustração infantil em 2011 – na vida real, ela é a mãe da Verônica, de 16 anos.

Entre a infância e o último livro, sua trajetória não foi sempre ditada pela literatura. Ela se formou em Ciências Contábeis, trabalhou como secretária executiva e mais recentemente teve até uma livraria em Sorocaba, a Elefante, que fechou por questões administrativas. Seus primeiros trabalhos com ilustração aconteceram apenas em 2006. E valeu a pena esperar! Por e-mail, Silvana nos contou sobre sua infância, trajetória e carreira. Confira os melhores momentos aqui!

(Ziraldo entrevistou Silvana Rando em 2013 / Foto: Arquivo pessoal)

 

Silvana Rando por Silvana Rando

“Silvana Rando é animada, otimista e muito exigente. Na maioria das vezes: criativa, alegre e infantil. Queria ser um pouquinho misteriosa, blasé...mas não consigo! Faço amizade sincera até na fila do pão. Eu adoro as pessoas, me interesso por elas.”

A casa da Silvana

“Minha casa é meio caótica, assim como eu. Mas é uma casa alegre, colorida, e cheia de vida. Todos aqui têm alma de artista.”

O que não pode faltar numa casa

“Comida, música, respeito, conversas e bichos. Todo mundo deveria ter arroz com feijão e respeito.”

Histórias da infância

“Nos anos 1970, a gente usava bastante a imaginação para brincar. Na minha cabeça, moravam muitas histórias. Sempre busco essas sensações quando estou inventando um livro. Tem um livro, que eu ainda não consegui terminar, que mostra meus cinco anos de idade. Está na gaveta, me esperando.”

(Foto: Arquivo pessoal)

Brincadeira de criança

“Era uma infância muito livre, de brincar no quintal, subir em árvore e comer matos estranhos. Fomos os precursores da alimentação ‘panc’ [planta alimentícias não convencionais]. No verão, ficávamos até tarde na rua, brincando de esconde-esconde, stop ou em momentos mais emocionantes, de carteiro tem carta.”

Sonhos infantis realizados

“Eu sonhava alto demais. Queria cantar no Chacrinha, queria ser a mulher biônica, queria ir para o futuro ou ficar do tamanho de uma formiga. O único sonho que realizei foi chegar no futuro. Ainda bem!”

Livros da infância e de sempre

“Quando era muito pequena, gostava de olhar os desenhos de um livro de receitas. Lembro que eles eram preto e branco, só no traço. Mas eu sempre pulava a página do pombo com ervilhas. Aquilo, para mim, era exótico demais. Depois, com cinco anos, ganhei uma coleção da Disney, na qual eu tentava reproduzir todos os desenhos. Achava aquilo a coisa mais linda. Ainda me lembro da sensação e guardo alguns exemplares, com provas das minhas tentativas de desenhar. Sempre gostei muito dos livros do Ziraldo, e pra minha alegria, em 2013 fui entrevistada por ele. Ganhei um autógrafo bem carinhoso no meu livro “Flicts”. Foi um momento inesquecível. Aprendi a ler porque queria entender o que dizia o livro do meu irmão mais velho,  “O escaravelho do diabo", da Lúcia Machado de Almeida. Mas o primeiríssimo que li da autora foi “O caso da borboleta Atíria”. Virei fã e li quase tudo da coleção Vaga-lume (editora Ática). O meu predileto sempre foi “Spharion, da mesma autora. Tenho um exemplar até hoje.”

(Este foi o livro preferido da infância de Silvana, que era fã fa coleção Vaga-lume. Ela guarda o exemplar até hoje. Foto: arquivo pessoal)

Dos primeiros desenhos à carreira de ilustradora

“Eu desenho desde que me conheço por gente. Sempre achei que fosse trabalhar com isso, até aprendi a pintar e cheguei a vender alguns quadros. Não deu muito certo... Eram todos feios demais. Em 1999, vim morar em São Paulo e passei a frequentar uma livraria. Descobri o universo dos livros ilustrados e o sonho de desenhar voltou com tudo! Montei meu portfólio e fui me envolvendo no universo dos livros. Trabalhei em Bienal, em livraria, até que em 2006 consegui alguns trabalhos como ilustradora. Desde então, estudo literatura infantil e ilustração todos os dias.”

Gostava de hipopótamo, mas desenhou um elefante

“É verdade que desde criança sou fã dos hipopótamos. Até fui madrinha de um, quando fiz um curso de ecologia. Mas sempre gostei de todos os animais, inclusive de elefantes. Um dia, rabiscando, desenhei um elefante que ficou tão legal! Fiz uma história de coragem para ele. Nasceu o Gildo.”

Série de TV para o Gildo

“Gildo ganhou uma vida que eu não planejei. Sem querer, consegui fazer um personagem muito carismático, que tem inúmeros fãs. Em 2019, ele recebeu mais de 300 cartas, uma mais linda que a outra. E já ajudou muitas crianças a perderem o medo. Adoro fazer os livros com ele! Espero preparar novas histórias em breve. Ele também está virando série de TV, com a produtora Coala Filmes.”

(No ateliê de Silvana, tem sempre bonecos, xícaras, papéis e muitos cadernos. Foto: arquivo pessoal)

Cantinho de trabalho

“No meu cantinho, o que não falta é bagunça! Trabalho numa mesa grande, cheia de papéis, xícaras, bonecos, canetas, lápis e cadernos, muitos cadernos. Meus bichos sempre estão por perto, são meus ajudantes.”

Livros na estante

“Tenho muitos livros em casa, porque gostamos e por conta de ter tido uma livraria [a Elefante, em Sorocaba]. A maioria são livros ilustrados. Mas confesso que por um tempo fui viciada em chick lit [ficção cuja protagonista é mulher e que retrata conflitos da mulher moderna]. Deve ser a influência da revista Capricho, tão presente na minha adolescência.”

Inspiração

“Muitas coisas me inspiram, principalmente o humor e a arte. Mas acho que a sutileza do dia a dia é que me traz as histórias.”

Criança precisa de...

“Atenção verdadeira. As crianças precisam de você por inteiro, de conversar, de olhar nos olhos e de sentir junto.”

Tema que gostaria de abordar com as crianças

"Empatia."

 

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