Reflexos no espelho das crianças negras

17/11/2016

Bianca é extrovertida, não leva desaforo para casa e tudo questiona. Preta é cheia de filosofia, perguntadeira que só. Abayomi, que nasceu de retalhos da saia da mãe, carrega os vestígios de suas origens. Na TV, na literatura ou nas artes, elas são protagonistas negras que soltam o verbo contra o racismo, questionam padrões de beleza que ignoram a diversidade e chamam a atenção para o empoderamento feminino. Têm inspirado muitas outras meninas por aí.

Quem são elas? Foram criadas com retalhos de pano, resgatadas da memória ou inventadas ao sabor da imaginação. São meninas fictícias, apesar de inspiradas na realidade – e com forte desejo de transformá-la.

Protagonista da premiada série de TV Pedro e Bianca, a personagem Bianca traz os conflitos de uma adolescente da periferia. Heloisa Pires Lima criou uma garota que resgata suas origens em Histórias da Preta. E Abayomi é mais do que uma boneca negra, sem costura, feita de tranças e nós; é amuleto de proteção, símbolo de resistência.

Fortes e potentes, são ainda poucas e raras. Em um país em que um total de 53,6% da população é negra, segundo o IBGE, a presença da negritude nas imagens das produções culturais brasileiras é ainda escassa. Crescer cercada de referências únicas e dadas como universais na literatura, na televisão, no cinema, na escola e também nos brinquedos empobrece o repertório da criança sobre a diversidade e dificulta o entendimento de sua realidade.

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No audiovisual, da TV à web, há um movimento de mudanças significativas, ainda que tímidas. A cineasta Renata Martins foi uma das roteirista que deu voz a uma personagem negra na série Pedro e Bianca. “Minha contribuição foi pensar em uma Bianca mais politizada, uma menina cuja as preocupações não passassem apenas pela questão estética, que o seu cabelo não tomasse mais tempo do que as demais questões que assolam adolescentes nesse rito de passagem para adolescência, mas uma menina negra que pudesse sonhar e ser o que ela quisesse ser”, conta Renata, questionadora também em sua adolescência.

 

Série de TV Pedro e Bianca

A roteirista, que rompeu uma barreira de produtores majoritariamente brancos e homens no fazer do audiovisual, acredita que Bianca seja uma das primeiras personagens negras adolescentes, classe média baixa, a ter voz na TV. “É uma menina que fala o que pensa e age. Acho que influências como essas são fundamentais para o processo identitário, sobretudo, das meninas negras.” Sim, é na interação com o meio que elas constroem sua identidade.

Ela aponta uma representatividade não condizente com a realidade do Brasil. “Se 53% da população se declara preta e parda, ter uma protagonista negra em novelas a cada cinco anos ou depois de vinte anos da Malhação talvez não seja motivo para comemorar e, sim, para ampliar a discussão sobre racismo institucional”, questiona.

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A escritora Heloisa Pires Lima, tece o imaginário da protagonista de Histórias da Preta um pouco a partir das suas vivências de infância, busca em sua obra destacar imagens bem diferentes daquelas que via nos livros didáticos da escola, quando criança. Ela lembra que era recorrente uma imagem que trazia uma figura amarrada a um tronco, numa dominação unilateral.

“A constrangedora bunda de fora submetida ao açoite configurava um castigo. A imagem deve ter sido muito impactante para meu coração em sua tentativa de cristalizar a posição do perdedor social”, conta. O dito “dominado” na imagem ocupava a representação de subalterno a que se refere toda a origem africana. Além disso, os livros não traziam nenhum contraponto.

Hoje, o espaço educacional conta com conquistas que contribuem para a valorização e o estudo da cultura negra, resultado de políticas públicas. A lei 10.639/03, que institui o ensino obrigatório da história e cultura africana e afro-brasileira nas escolas, abarca reivindicações e diagnósticos dos movimentos negros. “Encontrar estratégias para o aprendizado dos conteúdos em diferentes ciclos etários passa a incluir o que esteve ausente do debate pedagógico maior durante muitas gerações. Certamente, a formação dos educadores e materiais de apoio qualificados vêm mudando o futuro”, pontua a escritora.

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Imagem de uma criança brincando com bonecos que representam personagens negras

Com tamanho impacto na formação de meninas e meninos, o mercado de brinquedos é outro segmento que é visivelmente afetado pela falta de diversidade. A historiadora Jaciana Melquiades reforça a ideia do brinquedo representativo para todas as crianças. “Quando uma criança, branca ou negra, cresce sem os referenciais positivos da negritude, é reforçada a ideia de que a negritude é algo negativo, que o que não é bonito está sendo omitido.”

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Jaciana é uma empreendedora que fabrica e vende brinquedos representativos em sua página na internet. Ela diz que a falta de representatividade nesse mercado é também falta de reflexão das pessoas que já estão naturalizadas sob a predominância da cultura europeia. “As pessoas não questionam e naturalizam o racismo. Racismo a ponto de não questionarem o fato de não existirem bonecas que representem a maioria da população brasileira.”

Para mudar esse cenário, ela integra um grupo de pequenos produtores de brinquedos, engajados em movimentos como Cadê a nossa boneca?. O projeto é uma iniciativa da ONG Avante, que, em pesquisa, constatou que apenas 3% das bonecas vendidas em lojas online no país são negras. “Ter um brinquedo que se assemelha com quem está brincando oferece mais autoconfiança e, no caso da criança negra, a identificação se torna ferramenta de luta contra o racismo.”

Uma das experiências de Jaciana é a realização de uma exposição em que mulheres negras militantes são transformadas em bonecas e apresentadas às crianças com suas biografias. “São mulheres que têm várias características, com cabelos diferentes, pois a negritude tem muitas nuances.” As crianças que acessam essas bonecas descobrem a diversidade da negritude.

“A criança cresce entendendo que as características que ela tem não são feias. Uma criança de cabelo crespo, que cresce com uma boneca de cabelo crespo consegue entender seu espaço no mundo. Entende, inclusive, que ela cabe no mundo. Ela entende que é a pessoa que acha o cabelo crespo feio que tem que mudar o olhar dela. E não ela mudar o próprio cabelo.” 

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