Por matas, rios e igarapés da Amazônia

10/11/2016

Por Silvana Salerno

Meu amor pela Amazônia vem da infância. Aos 9 anos, ganhei da professora o livro Viagem através do Brasil. Fiquei fascinada com aquele mundo tão diferente, onde as pessoas viviam junto aos igarapés, rodeadas de mata, dormindo em rede. Aos 16 anos, fiz uma viagem de navio de Santos a Manaus. Em Belém, o navio entrou pelo rio Amazonas e fez uma parada em Santarém, que em 1968 era vilarejo no meio da floresta. Numa época em que não havia consciência nem proteção ambiental, filhotes de onça-pintada eram vendidos no porto. Um turista comprou um filhote, que viajou enjaulado no porão do navio; foi morar em Ipanema, num apartamento, e mais tarde foi doado ao zoológico. Outros tempos... Que bom que isso mudou.

No Amazonas, o nascer e o pôr do sol são de uma beleza estonteante. Naquela amplidão e naquele silêncio, admirando as tonalidades incríveis no céu, a gente se transporta para outro mundo. Nesse percurso, fui conhecendo os ribeirinhos e suas palafitas, crianças e jovens, pescadores e coletores de açaí e de castanha-do-pará. Na mata, os animais que mais via eram macacos e bichos-preguiça; nos manguezais, garças e guarás, e os igarapés cobertos de vitórias-régias. E fui descobrindo uma nova dimensão... Como tudo é grande na Amazônia!

Aos 20 anos, voltei para a Amazônia e me embrenhei mais pela mata e pelos igarapés, onde aprendi a dormir em rede e conheci as propriedades de algumas ervas medicinais. Pescadores, ribeirinhos, seringueiros, todos eles possuem conhecimento de cada folha, cada casca de árvore, cada tronco, cada semente. Assim como dos insetos, pássaros e animais. A cada jornada, recebia aulas de alcance inestimável. 

Nessa viagem, no encontro das águas do Amazonas com o Negro, agarrada na rabeira do barco, não só vi a diferença de cor das águas, mas senti a mudança de temperatura e de densidade dos dois rios. Foi muita emoção!

Aos 24 anos, viajei de carro pela nova estrada Belém-Brasília. Hospedei-me na casa de amigos na capital paraense e de lá fui para Marajó. No cais do porto, só havia barco para Cachoeira do Arari, bem no centro da ilha, e eu embarquei.

Os paraenses vinham com redes, para passar a noite; eu, que não tinha rede, dormi no chão. A viagem foi fantástica! Navegando pelo rio Arari, que atravessa a ilha de Marajó, deu para observar a floresta à noite. O piloto me mostrou pontinhos de luz – olhos de onça que brilhavam na mata e de jacaré que faiscavam nas margens. Enquanto isso, um dos barqueiros colhia água no rio para cozinhar o feijão e o arroz. Na noite do dia seguinte, depois de 24 horas de viagem, o barco fez a primeira parada e o piloto avisou que eu tinha chegado.

Perguntei por uma pousada. O capitão dos portos disse que ali não existia hotel e, como eu era mulher, iria me hospedar. No dia seguinte, seus filhos me levaram à balada de sábado à noite. Esperava ouvir música regional, mas estava muito enganada. Nessa noite conheci “Hurricane”, a nova música de Bob Dylan, que ainda não tinha ouvido em São Paulo – e eu era antenada no rock. Dançamos a noite toda. Aprendi passos incríveis que mostravam a influência do Caribe na região. Durante o dia, conheci fazendas de búfalo e a pesca artesanal. Uma coisa me chamou a atenção: em todas as casas, em local de destaque, havia uma pequena farmácia ao lado dos santos. Duas coisas da maior importância: a fé e a saúde.

Passou-se longo tempo até que eu voltasse à Amazônia. Durante esse período, eu me correspondi com um professor de literatura de Macapá e um guia de Belém, grandes amigos que continuam me ensinando. Aos 46 anos, fui para o rio Ariaú, afluente do Negro, a duas horas de barco de Manaus.

Nessa viagem, tive tempo para me aproximar mais do modo de vida dos ribeirinhos e de sua sabedoria para lidar com os aspectos negativos da natureza (inundações, picadas de bichos, doenças, falta de recursos, transporte). A paciência em relação às adversidades foi uma lição de vida.

Lembrei a história contada por Darci Ribeiro: a índia fazia cerâmica com a filhinha ao lado; a criança pegava as peças e quebrava. A mãe não proibia a criança de mexer na cerâmica. Uma pessoa perguntou por que ela não dizia nada à menina e ela respondeu: “Não precisa, ela vai aprender sozinha”. E com delicadeza continuava o trabalho, sem demonstrar nenhum sentimento: nem braveza, nem preocupação, nem alegria.

Anos depois voltei a Santarém. Fui a Alter do Chão, nadei no Tapajós, passeei pelo encontro do Amazonas com o Tapajós, conheci artesãos e escolas e assisti a espetáculos infantis de dança e música folclóricas. Em Belém, participei do Círio de Nazaré, ao lado de 2 milhões de pessoas!

Minha vivência na Amazônia me impactou muito, e eu quis contar às crianças que não a conhecem como é a vida por lá e como são as suas histórias. De origem indígena, as narrativas amazônicas são muito especiais. Como no sonho, na tradição oral também tudo é possível, e ninguém se espanta com nada. Na lenda do Boto, por exemplo, é natural que ele se transforme em gente e depois volte a ser bicho novamente.

Foi assim que escrevi um livro que reúne contos indígenas amazônicos, além da vida de Chico Mendes e de Rondon – personalidades fundamentais na região – e uma história que criei para falar das comunidades que ainda dependem do regatão para obter os produtos da cidade, em geral pela troca.  A biodiversidade, “os remédios” das plantas, como viver da floresta sem desmatá-la e a sustentabilidade são alguns dos temas abordados ao lado da literatura indígena.

O que é mais marcante nessa literatura? Para mim, são as narrativas filosóficas, sem conclusão nem lição de moral, que proporcionam liberdade ao leitor para curtir, viajar e saborear a leitura à vontade.

***

Silvana Salerno é autora de 20 livros, dentre eles Qual é o seu norte? Almanaque com histórias da Amazônia (2012) e Viagem pelo Brasil em 52 Histórias (2006), que recebeu o Prêmio Figueiredo Pimentel "O Melhor Livro Reconto", da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ), em 2007. Nasceu em 1952, em São Paulo, e formou-se em Jornalismo pela ECA-USP. Fez as traduções e adaptações de Germinal, de Émile Zola, e Ilusões perdidas, de Balzac, que receberam o certificado de Leitura Altamente Recomendável da FNLIJ, Guerra e paz, de Tolstói, e Os miseráveis, finalista do Jabuti de 2015. Ministra cursos e oficinas para crianças e adultos.

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