Os heterônimos visuais de Rui de Oliveira

06/02/2019

 

Consagrado mestre da ilustração brasileira, o carioca Rui de Oliveira tem suas criações difundidas em mais de 140 livros infantojuvenis, numa produção bastante premiada ao longo dos 40 anos de carreira. Ao olhar de relance sua trajetória, no entanto, ele diz não se firmar neste ou naquele estilo. “Um ilustrador não tem fases, ele tem livros. Cada texto é uma aventura diferente. O ilustrador tem heterônimos visuais”, explica o artista, que acaba de lançar Entre sonhos e tempestades.

No livro, o autor adapta e ilustra três peças do dramaturgo inglês — Sonho de uma noite de verão, Romeu e Julieta e A tempestade — com uma riqueza de detalhes nas imagens que honra o teatro shakespeariano. “Procurei nas ilustrações fazer sempre um enquadramento de teatro, como se os personagens interpretassem no proscênio de um palco.”

O projeto, inicialmente pensado para que cada peça ganhasse um único volume, nasceu com a versão do autor para A tempestade, ganhador do selo “Altamente Recomendável”, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, e do “Certificate of Honour for Illustration”, do International Board On Books For Young People (IBBY). “A realização de um livro desse requer paciência, árduo trabalho e muita documentação”, conta o autor veterano, que acabou por reunir três peças num só livro.

A seguir, conheça o processo criativo de um dos mais importantes ilustradores brasileiros.

 

Pesquisa intensa e documentação

O autor conta que o projeto exigiu vasta pesquisa. Em relação ao texto, um dos desafios foi transpor as três peças para a prosa: “São gêneros literários diversos, considerando que pretendi manter fidelidade máxima às histórias originais”, explica. “Efetivamente, eu não fiz uma ‘leitura’ dessas peças. Acho que seria uma pretensão muito grande.” A pesquisa para a produção literária focou no teatro elisabetano, arte teatral popular exercida durante o reinado de Elisabeth I da Inglaterra, cujo principal expoente foi justamente William Shakespeare. 

Quanto à iconografia, o artista destaca as referências visuais do Quattrocento – segunda fase do Renascimento italiano, movimento artístico, literário e científico italiano que marcou a transição entre a Idade Média e a Idade Moderna, sua fase de ouro. Outros artistas plásticos e ilustradores que pintaram e ilustraram as três peças da obra também foram referências para a criação dos figurinos e cenários, como Paolo Veronese: "Ninguém ilustra seriamente um conto clássico, ou mesmo um conto de fadas, sem conhecer e ter estudado profundamente Veronese. A encenação, a gesticulação dos personagens, os cenários, os detalhes, os diferentes tecidos e texturas, as indumentárias e adereços, enfim, todo o esplendor mágico de uma cena passa pela obra desse pintor de gênio", afirma o ilustrador, que estudou artistas como Veronese seguindo seu pensamento de que "diante das enganações tão glorificadas, a unica maneira de ser verdadeiramente contemporâneo é preservando o passado".

 

 

 

 

Entre Sonhos e Tempestades é marcado pelo tradicional uso de elementos como cercaduras, vinhetas e letras desenhadas à mão (os letterings) para ornamentar e valorizar o arranjo clássico do livro. Para o autor, “não se trata de ser genericamente classificado como clássico ou moderno, isso está muito acima de épocas ou modismos, isso se refere à estrutura eterna de um livro”. Na obra, tais elementos ganham um significado literário: as cercaduras nas ilustrações funcionam como bambolinas no teatro, assim como a guarda do livro é o seu pano de boca. “Procurei nas ilustrações fazer sempre um enquadramento de teatro, como se os personagens interpretassem no proscênio de um palco”, conta.

 

 

“A realização de um livro deste requer paciência, árduo trabalho e muita documentação”, conta. E todo esse estudo se reflete, posteriormente, nos signos estampados na obra. As histórias enriquecem com os símbolos imagéticos que os artistas imprimem nas ilustrações. “No caso do Entre Sonhos e Tempestades, na peça A tempestade, devido ao personagem principal, o mago e sábio Próspero, utilizei alguns símbolos, principalmente na ilustração, quando ele agita os mares e cria uma tempestade para trazer os tripulantes da caravela até a sua ilha. Nas pedras dos rochedos, de cores diferentes, existem signos de geomancia. Isso é bem importante. A geomancia é uma adivinhação por meio da terra, ao contrário da astrologia, também presente na ilustração, uma adivinhação por meio do céu e dos astros. Coloquei um dragão, ser mitológico que vive na terra, no mar e no ar, além de unir a água com o fogo. Representei também Éolo, deus dos ventos na mitologia grega. Essas imagens enriquecem a narrativa no imaginário dos leitores.”

 

 

A ilustração guiada pela literatura

"Um ilustrador não tem fases ou estilo, ele tem livros". Para o artista, o que existe não é um estilo individual, e sim um conceito literário a ser seguido. “Eu sei que as mãos que desenho são muito reconhecíveis, mesmo em livros com estilos de ilustração diferentes. O que interessa pra mim é a representação do gesto narrativo, não essencialmente a mão.”

É a literatura que guia o trabalho do artista, tanto na escolha do estilo de ilustração quanto do meio plástico (têmpera, guache, aquarela, acrílico, bico de pena..). “Publiquei em 2015 pela Companhia das Letrinhas o livro Cartas lunares. A técnica que utilizei nas ilustrações foi a da tinta acrílica aquarelada, em tons bem transparentes (lavis). O que determinou essa técnica foi a atmosfera do texto e a semântica das palavras. No caso de Entre Sonhos e Tempestades, precisava representar dramas e personagens reais, em que os detalhes dos cenários e das roupas tinham um papel significativo na história.”

 

 

 

A ilustração, portanto, adquire função dramática: “Na cena do Baile de Máscaras no Palácio dos Capuletos, no Romeu e Julieta, eu precisava mostrar a grande riqueza reluzente das indumentárias dos participantes do baile — as texturas, os bordados, as pérolas e o seu brilho, o cetim, veludo, a seda e a juta rústica com que está vestido Romeu fantasiado de peregrino. A representação de todos esses detalhes é muito própria da tinta acrílica. A cor é uma das matérias que compõem o espírito da cena e da arte de ilustrar”.

 

 

 

Na obra, a dominância de determinadas cores também narram: em Sonho de uma noite de verão é o azul; Romeu e Julieta, o vermelho; e a A tempestade, o azul turquesa. “No caso de Romeu e Julieta, utilizei o vermelho e os tons de cádmio. Isso acontece na ilustração em que o jovem casal passa a primeira noite junto. Mas é preciso que haja um contraponto à cor regente. Fiz o traje de dormir de Julieta em três tipos de verde: o vessie, o hooker e o verde esmeralda. O verde é complementar do vermelho. Solucionei todo o cenário em azuis e violáceos”.

 


Inspirações diversas

O ilustrador encontra no real as faíscas para suas produções, observando os tipos humanos nas ruas, no transporte, no cinema, pesquisando, por exemplo, os rostos de atores e atrizes que o impressionam. Para ele, um desenho expressivo das mãos e do rosto é essencial para se contar uma história visualmente – essa anatomia releva traços das personagens interessantes às histórias. “O que é mais expressivo, ao se desenhar o olho de uma personagem, não é o olho em si, mas o olhar. O imaginário de um leitor passa pelo real. Para tal, é preciso um olho bem desenhado, e não um bonequinho com dois pontinhos no rosto”, explica.

 

 

O livro é também especial pelo fato de ser dedicado ao irmão do autor, Denoy de Oliveira, falecido em 1998: “Ele sabia que eu estava desenhando A tempestade. Mas, infelizmente, não viu o livro pronto. Foi ele quem me despertou o interesse pelo teatro e pelo teatro lírico”. Com uma grande paixão pelo teatro, mais precisamente pelas teorias teatrais, e admiração pela ilustração clássica, outra homenagem que o livro faz se dá aos grandes mestres da ilustração do “Golden age”, movimento de 1880 a 1920 considerado sem precedentes na história da ilustração de livros e revistas.

No entanto, para além dessas inspirações, ele conta que sua motivação final ainda é o leitor. “Quando estou lendo um texto para ilustrar, procuro entender que a minha ilustração pertence mais à criança ou ao jovem para os quais estou desenhando do que a mim. Claro que você não está psicografando desenhos. Existe a emoção transformadora do artista. O meu desenho não é um ciclo que se fecha em mim mesmo. Ele termina no leitor. O ilustrador não proclama a sua imagem, ele apenas anuncia as possibilidades de leitura. Ilustrar é supor”, finaliza.

 

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