O embate da ideologia de gênero nas escolas

26/09/2017

 

Abandonada por um pai viúvo sem condições financeiras para criá-la, Maria Gomes consegue um emprego para cuidar do jardim de um palácio. Mas, para garatir seu sustento, tem de se fantasiar de homem. Lá conhece o príncipe, que se apaixona pela moça antes mesmo de descobrir seu disfarce. Quando a identidade de Maria é revelada, o nobre declara seu amor, e eles vivem felizes para sempre.

Maria Gomes e os cavalinhos mágicos é uma das narrativas do livro Lá vem história: contos do folclore mundial, de Heloisa Prieto. Lido no mês passado por alunos de sete anos de uma escola de Brasília, o conto foi considerado inadequado para as crianças. Os incomodados foram os pais, que pediram a troca da obra, demanda obedecida pela escola.

 

Ilustração Marcelo Tolentino

 

Esse não foi um caso isolado. Só neste mês há dois registros envolvendo conflitos ligados à questão de gênero no ambiente escolar. Em São Paulo, o tradicional Colégio São Luís foi questionado ao convidar o médico Drauzio Varella para falar sobre gênero e sexualidade aos alunos. Já em Tubarão (SC), um grupo de alunos fez uma apresentação sobre diversidade de gênero, e um dos pais questionou o trabalho dizendo que “estava em desacordo com as regras do município”. No Plano Municipal de Educação da cidade, a lei 4.268/2015 prevê que “materiais de ensino que incluam a ideologia de gênero, o termo gênero ou orientação sexual ou sinônimos” não podem ser discutidos em sala de aula.

O embate chegou à Base Nacional Comum Curricular, documento que estabelece o que deve ser estudado nas escolas brasileiras e teve neste ano suas diretrizes discutidas pelo Ministério da Educação (MEC). Uma versão final foi entregue ao Conselho Nacional de Educação em abril. O documento, entretanto, era diferente daquele apresentado aos jornalistas dias antes, com a exclusão dos termos “ideologia de gênero” e “orientação sexual” em ao menos três trechos da proposta. O caso, bastante noticiado, foi largamente discutido. Setores sociais chegaram a criticar a abordagem que o documento fez desses termos, já que a palavra “gênero” aparecia mais algumas vezes ao longo do texto que beira as 400 páginas.

“O termo ‘ideologia de genero’ não é conceitualmente correto nem aceito pelos especialistas e acadêmicos da educação. E grupos moralistas e religiosos fanáticos estão usando esse argumento para ‘mascaradamente’ contribuir para o preconceito, a violência e a censura, enquanto abrem caminho para aumentar o poder que têm em instâncias governamentais e da sociedade e pregarem os ideais religiosos que nada mais fazem do que plantar intolerância entre as pessoas”, afirma Ana Paula Sefton, doutora em Sociologia da Educação e pesquisadora em Estudos de Gênero pela USP (Universidade de São Paulo).

Para a pesquisadora, a participação da família na educação de uma criança é importante, mas defende a autonomia técnica da escola e dos seus docentes nas decisões pedagógicas. “Estamos falando de uma equipe técnica e especializada em educação, com formação acadêmica para tal, de um lado; e uma percepção familiar pautada em valores e crenças de outro.”

Ela também lembra que o mais importante não é qual livro é abordado na escola, mas como esse trabalho pedagógico é desenvolvido, já que as instituições de ensino são um espaço de diálogo e convivência. E esse é justamente o papel do professor-mediador no momento de leitura: “É de refletir, por exemplo, por que existe tanta violência e intolerância ao nosso redor, é de problematizar uma sociedade patriarcal, machista e homofóbica, é de considerar que a intolerância se baseia na percepção de que tudo o que é diferente de você é ameaçador e deve ser banido, é de propor outras formas de convivência mais saudáveis, respeitosas e amorosas entre as pessoas da comunidade, da cidade, do país e do mundo”. A última atitude que se deve ter é a imposição de padrões de como ser e estar em sociedade.

Assim, é relevante a existência de obras que dialoguem com um cenário de diversidade. A especialista aponta que esses temas têm sido cada vez mais comuns na literatura. E ela cita exemplos: A princesa sabichona e O príncipe Cinderelo, de Babette Cole (Martins Editora), Olívia tem dois papais, de Márcia Leite (Companhia das Letrinhas), e O livro da família (Panda Books), de Todd Parr.

Essa tendência não se vê apenas nos livros. No teatro infantil, as peças A princesa e a costureira e O príncipe desencantado, estreias de 2016 e 2017, desafiam padrões ao tratarem de contos de fada homoafetivos. No audiovisual, temos também a história de dois meninos que se apaixonam no curta In a heartbeat, além dos boatos de que a Disney deve trazer uma princesa lésbica nos próximos lançamentos. “Peças teatrais e filmes animados, ao trazerem personagens que rompem com os padrões sócioculturais normativos, nos fazem um convite a repensarmos nossa atuação como cidadãos e cidadãs neste mundo.”

Na infância, esse contato com o diferente é fundamental. “Tentar afastar a criança de tudo aquilo que traz a diferença à tona é impossibilitar que ela se desenvolva a partir da relação e da convivência saudável com o outro”, defende. “(Con)Viver de forma saudável e respeitosa é o que se chama de viver em sociedade, de se constituir como sujeito atuante para cada vez termos um mundo melhor.”

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