Mais do que ruído, palavra é rito

27/03/2019

 

Délcio Teobaldo é chamado ao palco. O homem multitarefa, que, além de se dedicar à escrita literária, é jornalista, educador, documentarista e etnomúsico, estende um longo fio de barbante diante da plateia e comenta: "Só vou pedir a vocês que me lembrem de usar isso aqui depois". Como prenúncio daquele encontro, permeado por muitas simbologias, abriu a mesa "Escrita e leitura, portas para a construção de identidade", que ocorreu na última quarta-feira (20/3), durante o II Seminário Internacional Arte, Palavra e Leitura, realizado pelo Itaú Social e Sesc São Paulo, com curadoria de Comunidade Educativa Cedac e do Instituto Emília.

Junto a Délcio, Margarita Valencia, docente e pesquisadora, enfatizava a sacralidade da palavra e tentava definir o exercício da escrita como o momento em que uma deusa, da literatura, sussurra dizeres no ouvido do poeta. Os dois, em perfeita harmonia, discutiam sobre as diversas manifestações da linguagem (leitura, escrita e fala), como ritual a ser respeitado. Délcio explicou a necessidade de pedir licença à palavra e comparou "saber" e "sabor", que compartilham do mesmo radical e explicitam que o conhecimento precisa ser palatável para nutrir o indivíduo. 

Ao final da conversa, enfim, o enigma é desvendado: o barbante seria uma referência ao exercício da palavra, do parlar, do parlamento. Recuperando sua ancestralidade, e de uma certa palavra universal, Délcio volta à infância e transforma o fio em brincadeira, tece uma cama de gato com as mãos. Margarita se voluntaria a recosturar o fio e dar continuidade ao jogo. A palavra está aí, esclarece Délcio, identitária à medida que aproxima avós e netas, construída no coletivo.

 

Crédito: Revista Emília

 

"Adolesci num ambiente onde os sagrados e seculares ritos cristãos, dos avôs brancos, dialogavam com a profana e ruidosa macumbaria da avó preta. Foi onde descobri que tanto para o Pedro Malasartes quanto para o Palhaço do Reisado o rosário era um só", diz o escritor. Para Délcio, passado e presente se encontram o tempo todo, assim como tradição e tecnologia. Ele conta, ao Blog da Letrinhas, um pouco mais sobre esses variados processos de construção de identidade.

 Acompanhe a entrevista completa a seguir!

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Retomando as diversas viagens que você fez como etnomúsico, o que pode perceber sobre a construção de identidade nos diferentes lugares que visitou? Para você, de que forma essa construção de identidade se relaciona com a escrita e a leitura?

Délcio Teobaldo – A escrita, como a necessidade orgânica de comunicar nossa emoção ao outro, através do gesto, da fala, do sotaque, de um riso, de um rabisco, de um som, enfim, de quaisquer expressões orais rítmicas; e a leitura, como a sensibilidade da escuta, do olhar, do sentir, do interpretar a espontaneidade da entrega e da comunicação do outro. Isso é universal.

Não importam as diversidades étnicas nem os territórios, assim começam todos os diálogos e se fortalecem as partilhas. Sempre acreditei que, no coração das cidades, pulsam as aldeias, onde os ciclos de preparação, plantio, cuidados, colheita e festares são (devem ser!), permanentemente, possibilitados e praticados. Há momentos ou mesmo longos períodos de tensões, mas a sístole e a diástole pedem vigília atenciosa. Reivindicam o fôlego e a liberdade.

Dos cafundós dos brasis, aos vinhedos do Algarve, em Portugal; dos festivais de danças, comes e bebes de Samir de los Caños, na Espanha, aos burburinhos das ruas de Brixton ou de Shoreditch, em Londres; dos tambores e danças rituais de Mumbai, em Maharashtra, Índia, às voçorocas dos chãos líquidos da Amazônia, processam-se os mesmos ritos e ruídos para que a experiência humana, os fazeres e saberes desses grupos sejam registrados. Contados. Gravados. Deixem impressos nos sentidos dos outros suas identidades. Sejam interpretados e tenham, perpetuadas, suas experiências únicas. 

 

No seu caso, como foi o processo de construção de identidade? Quais foram os livros, escritores e artistas em geral que contribuíram para essa formação? E, nesse sentido, considerando se tratar de um processo, quais são suas referências artísticas do presente que permitem que essa construção se renove e se mantenha em movimento?

Délcio Teobaldo – Sou ascendente (não uso a palavra descendente, por uma razão pessoal. Entendo que devo ascender, elevar, levar adiante o que herdei dos meus antepassados) de mouros e de indígenas, pelo lado materno; e de angolanos, pela paternidade. Cresci num ambiente onde a cultura oral era soberana. O pluriverso habitado pelos contos fantásticos que meus bisavôs trouxeram da Península Ibérica foram alimentados pela assombrosa literatura de cordel, na passagem deles por Recife, Pernambuco, antes de se estabeleceram, definitivamente, na Zona da Mata mineira. Da história paterna, possuo referências fragmentadas do trabalho compulsório no Recôncavo Baiano; nos cafezais do Vale do Paraíba, interiores do Estado do Rio de Janeiro, até os encontros dos avôs, do pai e da mãe em Minas Gerais. 

Adolesci num ambiente onde os sagrados e seculares ritos cristãos, dos avôs brancos, dialogavam com a profana e ruidosa macumbaria da avó preta. Foi onde descobri que tanto para o Pedro Malasartes quanto para o Palhaço do Reisado o rosário era um só. Que os atos da fé e da folia estavam dispostos aos mesmos brincantes.

Daí vem o meu encanto e profundo respeito pelas expressões humanas que se reconhecem e, por isso mesmo, se dessacralizam; pelas artes libertárias; pelos movimentos que nos desacomodam; pelos que trazem para a mesma roda de conversas Gregório de Matos Guerra, Lima Barreto e Charles Bukowski; expõem, lado a lado, as Artes Baniwa, Bauhaus e Basquiat; mixam o Calango, o Repente e o Rap (Rhyme And Poetry)...

 

 

Ilustração Marcelo Tolentino

 

A escritora nigeriana Chimamanda Ngozi declarou certa vez que só "se tornou" negra quando se mudou para os Estados Unidos. Até então, ela não tinha a experiência do que era ser negra, pois, no seu país natal, todos eram como ela. No Brasil, como se dá o reconhecimento da identidade negra? De que forma a tecnologia e as novas formas de se consumir conteúdo tem alterado a dinâmica de construção dessa identidade?

Délcio Teobaldo – Faço um contraponto à declaração de Chimamanda Ngozi com o “Poème 'A New York' (pour un orchestre de jazz: solo de trompette)”, do senegalês Léopold Sédar Senghor, em que ele, diante dos espantos da metrópole, cata, aqui e ali, cacos da sua herança. Identifica sua aldeia pulsando nos becos do Harlem. Ali corre o sangue negro. Os animais míticos, fabulosos, lhe dão pertencimento daquele solo. Nada, ali, lhe é (não deve ser!) estranho. A cidade está alicerçada sobre trabalho escravizado e o poema cobra. Exige reflexões, agora. Tradição e tecnologia comparam e conflitam seus valores verso a verso. 

Aliás, questionar qual a serventia das pratarias e dos cristais, sem o cheiro da feijoada e sem o calor das mãos que preparam osquitutes e dosam os temperos, deve estar acima do cerimonial das festas. É duro, mas potente aprendizado, ouvir-se enquanto se identificam os tantãs ancestrais no Drum and Bass; ler-se nos contos de Machado de Assis; encontrar-se nos chãos de pedra ou massapê das letras de Conceição Evaristo e Viviane Ferreira; ver-se num quadro do Mestre Didi; assistir-se num filme de Grande Otelo; achar-se num contragolpe do Mestre Moraes; ouvir-se numa fala de Abdias Nascimento; decidir-se nas encruzilhadas por onde andaram Lena Frias e Lélia Gonzalez; mirar-se no samba-enredo “História para ninar gente grande”, da Estação Primeira de Mangueira...

Não conheço maneira mais dinâmica nem mais visceral de construção dessa identidade.

 

Ainda sobre tecnologia, também poderia contar um pouco sobre o que trata seu novo livro Escambo?

Délcio Teobaldo – Escambo é a exposição política das minhas vivências, das incursões nas matrizes africanas, mouras e indígenas. Das caravanas dos mercadores, dos torés, dos batuques, das benzas, cantos, adivinhas, enfim, da palavra explorada em todas as suas intenções, na sagração da paridade e dos afetos. 

É uma escrita baseada no pensamento e nas práticas médicas populares, em que são trazidas à discussão, no mesmo nível, a Inteligência Artificial (leiam-se Tecnologias) e a Inteligência Alimentar (leiam-se Cidades Sustentáveis, métodos tradicionais de produção alimentar, agroecologia).

Neste contexto, Escambo favorece a troca entre os saberes universais, já a partir da capa, em que o convite, a chave, a porta de entrada aos signos é o símbolo @ que, à primeira leitura, nos parece futurista. Não, não é. Ora, para adquirir equilíbrio, os pés novos devem aprender, primeiro, a caminhar sobre tapetes rotos...

 

Você acredita que a globalização, de certo modo, homogeniza as identidades culturais dos países? Como subverter essa lógica?

Délcio Teobaldo – Vejo a globalização, na parte que me cabe, da comunicação de massa, como uma grande distribuidora de espelhos. Espelho em que você tem o livre arbítrio para mirar-se ou, então, oferecê-lo ao prazer e à promoção da vaidade do outro. No primeiro caso, você trabalha e adquire autoestima. Busca consciência de quem é; reconhece o seu rosto, seja no espelho d’água de um igarapé ou nas vitrines de um shopping. No segundo caso, espelhando-se no outro, expomos a nós mesmos e, irônica e tragicamente, ao mundo, nossa pequenez, nossa insensibilidade, nossa estupidez, nossa ignorância dos recursos, das ferramentas que as novas tecnologias de comunicação e interação nos oferecem.

Observo com atenção como, pouco a pouco, as estruturas verticais são substituídas pela horizontalidade, pela capilaridade. Assusta, reconheço, o filho mais novo não se sentar mais à mesa de jantar onde se posicionavam o avô, a avó, o pai, a mãe, a irmã mais velha, tradicional estrutura posteada para, ao invés disso, estar conectado aos “avôs”, “pais”, “mães”, “irmãos”, famílias mundiais incontáveis. Expansivas. Essa dinâmica, por nos cobrar reflexões mais ágeis, contraria toda lógica que, nesse universo, tornou-se uma palavra estática. Diretiva. A família universal se, antes, era uma ideia, hoje é fato. Não tem como revertê-lo. O que nos sobra é o admirar, palavra essência da filosofia, com que devemos aprender a lidar. 

Lidar e entender que os celulares são ferramentas como quaisquer outras, simples, utilitárias; produtos da metalurgia, cujas peças são forjadas com a mesma técnica com que se fabricavam os arados e as espadas e que, na raiz do processo, ontem, como hoje, homens, mulheres e crianças continuam sendo escravizados nas minas para extração do cobalto, na República Democrática do Congo.

 

Crédito: Revista Emília

 

No seu curta-metragem de 2001, Morre Congo, Fica Congo, um dos personagens comenta como o Jongo é um elemento importante em sua vida, e como quando era mais novo, não tinha essa mesma relação e não gostava da dança. Você acredita que um movimento semelhante a esse ocorre com a formação de leitores literários no Brasil? Na sua opinião, como o interesse tardio pela literatura poderia ser superado?

Délcio Teobaldo – Interessante o Jongo – cultura, fundamentalmente, geradora e mantenedora do verbo, da palavra – ser lembrado aqui. Entender os Jongos (no plural porque os toques e os pontos são múltiplos e possuem características próprias em cada grupo) não é fácil, porque é uma cultura ligada aos mais velhos. É um saber com esoterismo muito determinante. A palavra é mais que a dança. A dança é de fora, a palavra é de dentro. Como na Capoeira, em que há o jogo de dentro e o jogo de fora. O conhecimento e o entendimento disso vêm com a maturidade. Fruto que não se colhe verde. Acompanha-se a maturação dele. No seu tempo o tempo dá. 

A explicação acima responde, também, à segunda pergunta, pois numa analogia com os Jongos, mercado e escritores precisam expor suas danças de dentro: tendências, perfis dos leitores, formatos e suportes para a literatura, incentivos, investimentos; e suas danças de fora: a intergeracionalidade. Falta ao mundo da literatura, ao próprio mundo, enfim, o brincar, o exercício do olhar, da escuta, das partilhas afetivas coletivas. Essas atitudes, essas práticas geram interesses mútuos; criam expectativas; favorecem as fantasias; transferem forças aos braços; ânimas, necessidades de contar, ler, comunicar-se.

Aí está a gênese do Verbo. O movimento, a dialética, a criação, a consistência e permanência da escrita.

 

Como a literatura pode contribuir para a construção de identidade? Qual é o seu diferencial em relação às outras artes?

Délcio Teobaldo – Como escritor assumo, sem questionamentos, o meu papel de intérprete; o de estar entre a aventura humana, percebida através da minha ótica, e o leitor. Feito isso, que haja empatia e se entendam pelo bem da literatura. Limito-me a essa ação para me poupar das expectativas ou das vaidades. Redirecionar o olhar, utilizando-se de um apelo lúdico, não de uma ordem ou de um grito; apontar nortes ou desnortes, desde que se disponha a caminhar juntos; penso que, dessa maneira, a literatura, os autores e os leitores possam se espelhar e se entender, nas suas pedras ou nos seus prazeres.

Aparentemente simples e descompromissada, no entanto, essa atitude, como disse na resposta anterior, pede discussões e interatividades sem pausas. Nesses tempos em que as palavras não se conformam (nem devem!) ocupar mais e somente o limitado “preto no branco” nos papéis; em que reclamam outros suportes, espaços, inserções e dinâmicas, devemos abrir mais os olhos e apurar a escuta. Fazer isso com sensível calma, porque os atos de ler e escrever não se dão aos saltos. Não se abstraem do que somos dentro ou fora. Se não fosse assim, ideias expressas e impressas; concebidas e gestadas alheias à densidade e a complexidade humanas, não sobreviveriam à minutagem dos tempos. 

Hoje fala-se muito em artes integradas. Sempre faço uma pergunta: integradas a quem? Pergunto a quem porque, se perguntasse a que, as respostas seriam óbvias e muitas. Nesta pergunta reclamo a presença, a consistência de tecidos, sangues e músculos, inerentes à palavra que, para mim é motriz de todos os meios de expressão. Uma palavra é capaz de gerar mil imagens.

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