Mahatma Gandhi e o silêncio

02/05/2017

Por Leo Cunha

 

Mahatma Gandhi morreu de frio, no portão da minha casa. Ele não fez nenhum barulho, não gostava de confusão, resistiu pacificamente à dor e ao frio daquela noite de inverno. Ninguém da família o viu lá fora. Ninguém ouviu nada. Na manhã seguinte, meu pai o encontrou estirado diante do portão, com a cabeça sobre as patas.

Durante a noite, nós quatro – meus pais, minha irmã e eu – vasculhamos todos os cômodos, rodamos o jardim, fuçamos o canil, gritamos, chamamos, berramos. De nada adiantou. Como acontece com muitos dálmatas, Gandhi era totalmente surdo. Por isso morreu de frio, do lado de fora do portão.

Demoramos muito a descobrir o problema da audição. Ele chegou lá em casa bem pequetito, filhotinho ainda, poucas semanas de vida. Era nosso primeiro bicho de estimação, e aquela raça a gente só conhecia do famoso desenho Os cento e um dálmatas. Na animação os cachorrinhos eram super animados (desculpe o trocadilho), espertos e atentos. O Gandhi, não. A gente falava e falava e falava com ele, e o bichinho nem tchun.

No início, pensamos que era normal, vai ver todo cachorro era assim, demorava a entender os chamados. Mas ele foi crescendo e nada de atender aos nossos pedidos e ordens. “Vem cá! Senta! Levanta! Deita!” O Gandhi ficava lá na calma dele, avoado, contemplativo. Mal virava a cabeça pra gente. Contratamos um adestrador de cachorros e, logo na primeira sessão, ele deu o veredito: “Esse cachorro docês é surdo!”.

Isso não impediu, é claro, dele ser muito querido. Nessa foto aí, Gandhi tá todo aconchegado no colo da minha mãe, e minha irmã bailarina segura a patinha dele com o maior carinho, apesar dos olhos fechados, por conta do sol. E eu ali do lado, com meus 10 anos de idade e aquele cabelão roqueiro. Na época, confesso, eu era muito fã do rock progressivo (mas, se alguém espalhar, eu nego!)

O Gandhão era um bicho muito querido. Gandhão, sim, senhor, você não leu errado. Porque logo depois ganhamos um pinscher pretinho e marrom, muito do espevitado. Virou Gandhinho, embora não tivesse um milésimo da tranquilidade budista namastê  hakuna matata do colega pintadinho. Pelo contrário: todo dia o Gandhinho escapulia por entre as grades do portão, pra correr atrás dos carros e motos, latindo e rosnando feito um maluco. O Gandhão a gente nem deixava sair pra rua direito porque ele não ouvia o barulho dos carros e corria o risco de ser atropelado.

Depois que o Gandhinho sumiu e o Gandhão morreu, nunca mais tive coragem de ter um cachorro. Achei sensacional quando vi as ilustrações que o Laurent Cardon fez pro meu livro As fantásticas aventuras da Vovó Moderna, pela Companhia das Letrinhas. Sabe-se lá por quê o Laurent teve a grande ideia de pegar um cachorro de estimação – que mal aparecia no texto – e o transformou num dos personagens mais importantes do livro, ao lado de um gato que nem tinha entrado na história. Tudo isso só por conta da ilustração! Foi o mais próximo que eu tive de ter um cachorro só meu, desde o dia em que Mahatma Gandhi morreu em silêncio, no portão da minha casa.

 

***

 

Leo Cunha publicou mais de cinquenta livros para crianças e jovens desde 1993, muitos deles em parceria com outros autores, como Rosana Rios, Alessandra Roscoe, Luiz Antonio Aguiar, Pedro Bandeira, Rogério Andrade Barbosa e Ricardo Benevides.

 

 

Compartilhe:

Veja também

Voltar ao blog