Heloisa Prieto abre seu álbum de família

11/10/2016

Por Heloisa Prieto

 

- Olha que vocês não conseguir dormir depois!

Rindo atrás das grandes poltronas da sala, meu primo Mário e eu assistíamos a um filme de terror, em branco e preto, na TV. Era a história de uma velha atriz de muito sucesso que, ao enlouquecer, passava os dias a pentear-se e maquiar-se diante de espelhos. Detalhe: nos reflexos ela se via jovem e ainda maravilhosa. Final: ela acaba virando a fantasma dos espelhos, uma espécie de Loira do Banheiro.

Mais divertido que o filme era assisti-lo fugindo do controle carinhoso de minha avó, num esconde-esconde maluco. Mario e eu nos enfiávamos debaixo da mesinha, corríamos pela sala, tentando ver a história até a aterrorizante última cena. Nossa avó era estilista, ou seja, adorava espelhos.... Nas semanas que se seguiram, fugíamos em secreta cumplicidade, dos vários reflexos dos espelhos das salas e dos quartos.

Eu e meus primos Mário e Edgarzinho, mais conhecido por Dinho, formávamos o trio da bagunça. Então porque será que na foto antiga, tirada em Santos, em meados de 1960, estamos, Mario e eu, tão sérios, singelos e bem comportados? Rachel, minha melhor amiga, vizinha de nossa casa em São Paulo, estava na praia naquelas férias? Seria a cachorrinha a minha Suzy ou a do Dinho? E Renata! Minha irmã. Tão falante hoje em dia, era uma menina calada e fofinha....

A foto contraria minhas lembranças e evoca outras reminiscências: Rachel, inglesa, trocando parlendas comigo no quintal da casa de meus pais. Decoro a sinistra cançoneta Três ratinhos cegos e, em troca, ensino-lhe a ameaçadora cantiga: “Lá em cima do piano, tem um copo de veneno, quem bebeu morreu...”. E que Suzy seria aquela? Suzy, para nós, não era nome de boneca, mas de cachorrinhas. Quando minha cocker spaniel tão querida por todos faleceu, meu primo Dinho decretou que, daquele momento em diante, todas as cachorrinhas que fossem adotadas por nós deveriam chamar-se Suzy.

Além da ausência de Dinho, que provavelmente passava as férias no interior de São Paulo, reparo novamente em nossos rostos compenetrados, as costas empertigadas. No tempo das fotos branco e preto, das vistosas e grandes máquinas fotográficas, hora “de fazer pose para tirar retrato” era coisa séria. Como se estivéssemos diante de um pintor, ficávamos imóveis e, o mais estranho hoje em dia, sem as caretas, gestos, sorrisos típicos da era das fotos digitais. Afinal, “retratos” eram lembranças a ser guardadas em solenes álbuns de família.

Sentindo saudades súbitas da casa de minha avó, vasculho a memória em busca de percepções passadas e reconheço os vários livros que nasciam naqueles anos: O jogo da parlenda e Esconderijo, entre tantos outros. Cultivar a memória é aprisionar-se ao passado? Acontece que a memória é também fabulação, a viagem interna a sobrepor fios narrativos, interpretações, camadas diversas de compreensão. Um diálogo íntimo a alimentar a capacidade de maravilhar-se.

É também tentar desafiar as paredes do esquecimento em busca de um saber fugidio e cambiante. Percorrer as zonas fronteiriças da apreensão e da reinvenção de atos no passado, constitui-se, ao menos para mim, como uma forma de atenção renovadora para criação de novas histórias. Ah, como essa foto antiga me traz novas ideias...

 

Heloisa Prieto escreve e traduz, tem mais de 75 obras publicadas, a maioria delas pela Companhia das Letrinhas, tais como Divinas travessuras, Mil e um fantasmas e O estranho caso da massinha fedorenta. Pesquisadora de mitos e lendas de diferentes países, é mestra em comunicação e semiótoca (PUC) e doutora em literatura francesa (USP). Durante a infância, teve grande contato com tradições orais da Espanha, por meio da bisavó, do Japão, por meio da avó adotiva, da Bahia, por meio da mãe, indígena, por meio do pai, apaixonado pela cultura xavante. As múltiplas vozes que alimentaram sua imaginação marcam sua narrativa. Tem obras adaptadas para a TV, o cinema e o teatro.

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