Gente como veio ao mundo e meus monstros na gaveta

24/09/2018

 

Por Maria Amália Camargo

Há muitos e muitos anos, tantos que nem saberei contar quantos, vivia pelos bosques da Grécia uma moça chamada Diana. Diana ou Artêmis era a deusa da caça, da Lua e dos animais. Ela tinha o costume de andar pra lá e pra cá com um arco e flecha a tiracolo. Como toda a deusa, tinha superpoderes, mas, como toda heroína, tinha um ponto fraco: morria de vergonha que a vissem sem roupa.

 

Ilustração Marcelo Tolentino

 

Numa tarde bem quente de verão, Diana passeava com suas amigas ninfas e seus colegas faunos e decidiu se refrescar em um rio tranquilo que atravessava o bosque. Na época, não existia biquíni. Então Diana e suas amigas entraram na água, claro, sem roupa. Para azar das moças calorentas, naquele momento, um jovem chamado Acteão andava pelo mesmo bosque, acompanhado dos seus cães de estimação. Nunca conseguiremos saber se o jovem parou para tirar um pedregulho da sua sandália ou se parou para espioná-las. O que interessa saber é que Diana percebeu sua presença e não gostou nada nada da bisbilhotice do rapaz.

A deusa, que, além de envergonhada era muito vingativa, tratou de jogar uma maldição em Acteão: transformou-o em um cervo. Mas não foi uma transformação abracadabra, como num passe de mágica. Acteão pouco a pouco se metamorfoseou no animal. Pois bem, um dia da caça, o outro do caçador: o jovem teve o mesmo destino dos cervos que abatia e acabou devorado pelos seus próprios cães!

Conheci essa história da mitologia greco-romana, do Banho de Diana, por meio de uma das muitas pinturas que representam o mito (se você tiver interesse, jogue esse título na internet e perceba a infinidade de artistas que retrataram a cena). E, bem, assim como o Acteão, eu também não fui muito feliz ao tentar recontar a história. Mas não foi a Diana quem me censurou. Não passei pelo infortúnio de Acteão, no entanto, vi-me obrigada a engavetar anos de pesquisa e um livro com mais de cem páginas escritas. Para quem escreve, enterrar uma ideia é pior do que ser transformado num cervo.

Há muitos anos, elaborei o projeto de uma coleção de livros de arte-educação, onde cada volume explorava um tema presente no acervo de um dos maiores museus de arte do Brasil. O primeiro desses temas era um assunto adorado pelas crianças: monstros!

Comecei pesquisando o significado dos seres monstruosos para nós, humanos. Passei para o significado dessas criaturas dentro de diferentes culturas – sabiam que cada sociedade tem um monstro para chamar de seu? – e me empolguei tanto com o assunto que fui parar num mundo sem fim de curiosidades. Descobri que na Antiguidade os fósseis dos dinossauros encontrados eram atribuídos a ossadas de dragões, esqueletos de gigantes e a mais uma porção de restos mortais de monstros da mitologia.

Um crânio de elefante anão, por exemplo, que apresentava uma depressão na testa onde estaria localizada sua tromba, era facilmente confundido com o esqueleto de um Ciclope, aquele gigante de um olho só. Só para lembrar, os dinossauros foram descobertos só no século XIX. Então, imaginem o tanto de ossadas de monstros que nossos antepassados não acabaram tropeçando por aí.

Descobri também que no período das Grandes Navegações, entre os séculos XV e XVI, acreditava-se que para cada animal existente na Terra havia um correspondente no fundo do mar. A partir dessa teoria surgiram as nomenclaturas dos animais marinhos: leões-marinhos; cavalos-marinhos; elefantes-marinhos... Até o narval, com aquele chifre enorme no meio da testa, virou “unicórnio do mar”. Naquela época, ninguém sabia que os unicórnios não existiam. Cá entre nós, eu acho que se a gente procurar em alguma floresta, eles aparecem. Mas esse é um parênteses na conversa.

Sim, seria uma publicação com uma imensidão de informações que as crianças adoram (dragões, monstros, seres submarinos e dinossauros). E que não pôde seguir em frente por conta de um pequeno detalhe: todos os quadros selecionados apresentavam, além dos monstros, mulheres sem roupa na composição.

A editora do livro, antenada com o que era permitido e proibido na sala de aula, imaginou que a presença de tantas figuras humanas nuas levaria o livro a ser rejeitado em algumas escolas mais conservadoras. Para saciar a dúvida, algumas instituições de ensino públicas e privadas foram consultadas. Dito e feito: metade respondeu que não adotaria livros assim, metade respondeu que não via problema algum em sugeri-lo como leitura. Diante do impasse, anos de pesquisa foram para o fundo da gaveta e recomecei o projeto das obras do museu com outro tema: “bichos”. Dessa vez, sem nenhuma figura humana para atrapalhar.

Desde então eu me pergunto – e fico espantada – como uma escola, que tem a função de estimular o desenvolvimento dos alunos, sequer se propõe a refletir sobre a diferença entre um nu artístico e um nu sem finalidade educativa. E me causa espanto também o comportamento dos pais que, na tentativa de preservarem seus filhos, criam uma barreira entre o mundo interior e o mundo exterior das crianças.

É fundamental entender que as imagens de figuras nuas reproduzidas em um livro de arte-educação estão inseridas dentro do contexto da literatura e das artes visuais. Alguém consegue imaginar a história da arte sem nus?

Por que não aproveitar e mostrar às crianças a relevância do estudo da anatomia humana para o desenho? Por que não aproveitar para ensinar conceitos como simetria e as proporções do corpo no desenho (quantas cabeças empilhadas formam a altura de um corpo, a largura do tronco...)? A importância do estudo do movimento, do equilíbrio, da forma? A  dimensão entre a figura humana e o cenário na elaboração de uma pintura?   

E é possível ir muito além: diante da representação de uma figura humana nua, a criança aprende a lidar com o próprio corpo, com a diferença entre a anatomia de um corpo feminino e a de um masculino. E, assim, é capaz de compreender de forma natural as transformações pelas quais passará dali a alguns anos. A pré-adolescência já é um período tão conturbado, tão cheio de novidades, por que não usar a arte para mostrar o desenvolvimento do corpo humano?

Há algum tempo o Museu d’Orsay, em Paris, criou uma campanha de incentivo à visitação do seu espaço cujo slogan era “Traga seus filhos para ver gente nua”. Será que no Brasil essa propaganda seria censurada ou causaria polêmica? É certo que sim.

Lembro-me de ver gente nua nos livros desde muito pequena. Eu adorava folhear os fascículos de história da arte e nada me causava estranheza. Pela fotografia da seção Retratos (você já foi até lá, ou veio aqui primeiro?), meus pais não pareciam se importar com a pose de duas crianças ao lado da escultura do casal de enamorados que representa o Amor. Oras, se o casal está debaixo d’água – e creio que ele está lá, em Poços de Caldas, até hoje –, natural que não usem capa de chuva nem galochas.

Todo mundo veio ao mundo pelado e ninguém toma banho de roupa. O nu nas artes plásticas, diferentemente dos monstros que escondi na gaveta, não é um bicho de sete cabeças. E aí deixo uma pergunta no ar: será que o incomodo de ver gente nua está na cabeça das crianças ou dos adultos?

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Maria Amália Camargo nasceu em Santos, em 1977. É autora de diversos livros infantis. Pela Companhia das Letrinhas, publicou Minha vida é chata pra cachorro.

 

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