É de menina ou de menino?

12/12/2017

 

Por Dani Gutfreund

 

Há exatamente 40 dias só penso nisso. E há exatamente 40 dias me encontro estagnada: o que é livro de menina? E livro de menino? Continuo sem saber a resposta, talvez porque não saiba mesmo o que é qualquer coisa de menino ou de menina.

 

Ilustração Marcelo Tolentino

 

Fui buscar na minha infância, vasculhei na memória como eram os livros que lia, as coisas que fazia. E me peguei pensando em como imitava meu irmão mais velho em tudo. Para ir à escola, vestia meu Kichute amarrado no tornozelo, esquecendo que estava de saia, porque era assim que meu irmão e o Du, meu primo e melhor amigo, faziam. O melhor amigo do Du era o meu irmão. Nós dois, mais novos, dividíamos justamente nosso tempo entre minhas Susies e a incrível coleção de carrinhos matchbox dele. Quando jogávamos futebol os três, eu era o Chicão. Queria ser o Pedro Rocha, mas meu irmão tinha a preferência.

Meu cabelo era comprido e sempre embaraçava. Minha avó pedia, encarecidamente, que eu me penteasse. O coque dela era impecável. Nossas mãos, no entanto, eram iguais e gostava de brincar de pôr seus anéis, sem imaginar que um dia serviriam nos meus dedos como se sempre tivessem sido meus. “Põe um vestidinho”, ela falava. Eu punha, e logo vestia meu Kichute para brincar com os meninos. Adoro vestidos. Tenho quase cem no armário, cada um com uma história. Posso garantir que nem mesmo um é cor-de-rosa e a maioria é azul. Detesto cor-de-rosa, mesmo que as rosas sejam minhas flores preferidas. Minha avó tinha mil pés em casa. Ela que cuidava. Eu ia atrás dela e, assim, experimentei o que era ter o dedo verde.

Hoje, tiro seu anel para mexer na terra e sussurro segredos às minhas plantas. Já não amarro nada no tornozelo e desisti da chuteira e do futebol. Não sou nem mais, nem menos qualquer estereótipo em que se possa pensar. Sou eu, um pouco como cada um, um pouco só de mim.

É certo que em alguns dias, ao invés de correr, construir casa na árvore, atravessar o mar em busca de tesouros, brincar de fadas ou viajar com meu elefante que falava inglês, tudo o que queria era ficar lendo por horas ou pintar com a minha mãe. Lia de tudo, aventuras, suspenses, diários, contos, romances, crônicas... Até hoje adoro a Pippí; em algum lugar, eu me sentia como ela. Lembrar de tudo isso foi bom, mas nada de encontrar uma resposta: lia livros com os quais me identificava, que me tocavam e quase nunca deixava um por terminar, porque, curiosa demais, não poderia ficar sem saber como acabavam.

Entre esses livros que de alguma forma me movimentavam, li histórias em que meninos voavam pela janela, amigos viviam numa rua sem saída, animais tinham dotes musicais, havia heróis e heroínas, bolsas mágicas, pavão com torneirinha, vacas voadoras, jogos de bafo... Poderia continuar por páginas e páginas, porém o que importa aqui é pensar que a leitura nos possibilita construir mundos e conhecer outros, e o nosso, independente de gênero.

Segundo Teresa Colomer, em Introdução à literatura infantil e juvenil atual (Global, 2017), “a literatura infantil e juvenil sempre exerceu uma função socializadora das novas gerações”, pois surge com a intenção de educar e acaba por perder sua vertente pedagógica conforme o literário ganha espaço, ainda assim, a considera o melhor documento para reconhecer a imagem que a sociedade desenha de si mesma.

Remetendo-se à transmissão cultural de valores dos modelos femininos e masculinos na literatura infantil, Colomer revela que, com o desenvolvimento da produção literária não sexista, não apenas as meninas se beneficiavam, mas também os meninos, que viam seu raio de escolhas expandido e incluindo mais “temas intimistas, poéticos ou de conflitos internos”. Fica claro que havia – há? – assuntos dirigidos a meninas e assuntos ditos para meninos, embora já aparecesse um desejo de que se ampliasse o que fica entre e traz traços de cada um. Sem mencionar leitores que transitam em todos os mundos.

Talvez, de modo geral, as meninas prefiram as formas arredondadas e os meninos, as pontudas, como disse uma amiga numa conversa nesses longos 40 dias (sem considerar as bolas). Mas há os meninos que adoram curvas, as meninas que se interessam por lanças, ou por algo disforme, ou por uma forma que ainda não conhecemos. E quando esse outro está na sala da nossa casa, brincando com a forma que estranharíamos caso fosse o filho da vizinha, do padeiro ou mesmo se fosse alguém não tão distante, podemos conceder-lhe um olhar diferente, deixando que nos conte quem ele é, independente de nossas expectativas, e assim transformar o modo como vemos.

Talvez, de modo geral, as meninas gostem de capas com brilhos e plumas, de histórias de princesas, histórias de amor, enquanto muitos meninos dispensarão toda sua atenção aos livros de dinossauros, monstros, trens e aviões. Talvez. E, entre as crianças que adoram livros que falem de todos os outros temas, incluindo ou não esses, acharemos meninos e meninas que nos surpreenderão com seu olhar, que nos ensinarão a ver de outro modo, os livros e eles. Essas pessoas farão com que questionemos os padrões e estereótipos que construímos ao longo de nossa formação, que estão arraigados em nossa cultura, colocarão em jogo nossa experiência e conhecimento, farão com que entendamos a importância de a certeza faltar, de rever o saber, de recompor a história, de desconstruir convenções e repensar normas e conceitos de moral. Porque ainda que sejamos tão iguais, somos todos um tanto diferentes.

A escolha dos livros, a preferência por um ou outro, independe do gênero. As pessoas se interessam pelos mais variados temas, que as desafiam, encantam, revoltam, permitem conhecer novos mundos, visitar lugares escondidos, transformar temores, enfrentar limites, descobrir valores. Livros que lhes acalentam, lhes ajudam a entender o sombrio, dão luz ao que não se fazia ver. E isso muda com a gente, a cada instante, a cada experiência enquanto construímos nossa identidade. A leitura é o encontro consigo através do outro, um mergulho em si mesmo por caminhos desconhecidos. É uma experiência possível. Não importa se é de menino ou menina. Importa que seja literatura.

***

Dani Gutfreund fez Pedagogia na PUC-SP e mestrado em Literatura Contemporânea Inglesa na Goldsmith’s College, University of London, com especialização em tradução pela City University, Londres. Foi editora da MOVpalavras de 2013 a 2016 e supervisora geral do Educativo Bienal em 2015, depois de ter sido coordenadora do setor de Comunicação do mesmo de 2010 a 2013. Foi professora de Educação Infantil e Fundamental na Escola Viva e na Escola da Vila, em São Paulo, e trabalhou no ensino público em Londres, na Inglaterra, durante os 13 anos em que morou lá. Hoje colabora com a editora Livros da Matriz, dá aulas de arte na Beacon School e oferece cursos de livro-álbum e  livro-imagem, assim como oficinas para produção de livros com artistas, ilustradores e escritores. É autora de Olha lá a Ana!, publicado em 2015 pela MOVpalavras, e traduziu O menino perfeito (Livros da Matriz), Mundo cruel (Boitatá), Quando abro os olhos e A galinha Ernestina,  (MOVpalavras).

 

Compartilhe:

Veja também

Voltar ao blog