Dois e dois são cinco — viva os 25 anos da Letrinhas

11/01/2017

Por Lilia Moritz Schwarcz

Foi no dia 5 de maio de 1992 que fizemos a primeira festa da Companhia das Letrinhas. Ritual é ritual e resolvemos inaugurar o novo selo da editora — uma espécie de irmã caçula — com bolo, pipoca e muitos balões.

Criar uma linha infantil era ideia antiga e que reaparecia, de forma teimosa, a todo momento. Considerávamos, ou melhor, tínhamos certeza, de que essa seria uma maneira de juntar as duas pontas de uma mesma corda. Se já contávamos, àquelas alturas, com uma coleção forte de ficção e de não ficção para adultos, era chegada a hora de pensar nos filhos; nas crianças que frequentavam as livrarias junto com seus pais.

Não seria correto afirmar que faltavam boas editoras de livros infantis. Ao contrário, o maior desafio era encontrar uma fresta, e entrar nesse território tão competente como bem explorado. A estratégia que desenhamos, então, procurava dar prosseguimento à mesma filosofia geral que orientava a Companhia: encontrar livros de reconhecida qualidade editorial, combinados com muito apuro gráfico. Foi assim que, juntando dois mais dois, tentamos somar cinco!

Em primeiro lugar, o suposto vigente na editora era que boa literatura não tinha pátria. Entretanto, se o princípio parecia correto para o mundo dos adultos, o mesmo não valia para as crianças. Ou melhor, naquele momento, vigorava um certo preconceito no país com relação à literatura estrangeira infantojuvenil. A concepção vigente era que livros infantis não “viajavam” bem e sobreviviam mal à operação de tradução. Usando da experiência acumulada na Companhia apostávamos, porém, que havia, sim, lugar para esse tipo de filão. Mais ainda, constatamos que grandes nomes da literatura infantil internacional tinham seus direitos ainda livres para o Brasil. Aí estava, quem sabe, uma das nossas vocações. 

Pois bem, foi no ano anterior à criação da Letrinhas, em 1991, que tomei coragem e participei da Feira de Frankfurt como “agente duplo”. Se já frequentava aquele evento fazia anos, mas na condição de editora de livros acadêmicos, agora propunha-me a dividir o calendário, visitando alguns estandes infantis. E o mundo se abriu de uma forma quase que definitiva. Lembro de sair desses encontros entusiasmada. Entre as histórias dos adultos e as histórias das crianças meu interesse balançava, e fui logo percebendo que havia muito chão naquela estrada. E a decisão, no que concerne à seleção de livros estrangeiros, veio rápida: íamos começar com Peter Rabbit, o coelho doce e esperto da inglesa Beatrix Potter — que era quase uma instituição no Reino Unido —, e o elefante Babar, outro personagem simpático e muito famoso na França.

Mas, jovens que éramos, queríamos arriscar ainda mais. Portanto, e em segundo lugar, achamos por bem procurar por “continuidade”, no caso dos autores de nosso catálogo. Convidamos, assim, os escritores da Companhia para criar livros infantis, e surpreendemos vários deles com esse tipo de desafio. Foi com esse objetivo que chamamos Ruy Castro para recontar a história de Alice no país das maravilhas, de Lewis Carrol. A princípio, ele estranhou a iniciativa. Com o tempo, porém, esse livro virou, e nos termos do seu autor, um “clássico”. Pedimos também ao poeta José Paulo Paes, outra “prata da casa”, que fizesse poemas ligados à atividade de letramento. E assim surgiu Uma letra puxa a outra, esse livro que mistura sensibilidade com muita imaginação e bom humor. Com esses dois títulos demos início a um tipo de proposta que permanece forte no catálogo da Letrinhas: não pretendemos apenas publicar e veicular obras já existentes; nosso desafio é também dar forma a projetos que nós próprios criamos e acreditamos.

Mas não bastava, julgávamos nós, apenas garantir qualidade literária. Na nossa opinião, o filão infantil bem que merecia um pouco mais de requinte gráfico. Afinal, crianças têm, sabemos todos, muito bom gosto e guardam seus livros como verdadeiras preciosidades dispostas em suas caixas do tesouro.  E foi assim que resolvemos chamar ilustradores de asseverada competência, mas que tinham jeito e vontade para alcançar outras — e complexas — realidades, como são as de nossos jovens. Com esse espírito, Laura Beatriz ilustrou e deu vida a uma Alice colorida, viva, divertida. Imbuído de tarefa paralela, Kiko Farkas inventou um alfabeto moderno, esperto, cheio de cores inusitadas.

De lá para cá, e nesses 25 anos de existência, “um livro puxou o outro” e agora já parecemos bem “crescidinhos”, com nossos mais de setecentos títulos. Mas se o tempo passou rápido, e são muitos os livros e também os autores e ilustradores que nos acompanham nessa jornada — quase uma família extensa —, é preciso confessar que a Letrinhas nasceu enxuta em sua equipe, e assim continua. Nos primórdios desse projeto trabalhavam apenas Elisa Braga (que cuidava da parte gráfica com uma sensibilidade que só ela tem), Maria Emília Bender (que tomava conta do texto, da rima e da beleza da edição) e eu. Éramos três mosqueteiras, e hoje a questão de gênero não me passa desapercebida.

Atualmente, a Letrinhas continua majoritariamente feminina; aliás, de forma coadunada com o setor educacional no Brasil. Lá estão Mell Brites (nossa editora tão especializada quanto animada); Helen Nakao (que vibra muito a cada nova ilustração e a cada livro novo) e Gabriela Tonelli e Antonio Castro, que vieram completar a turma e incluir mais pluralidade e entusiasmo jovem ao grupo. Mas se a equipe foi e é pequena, nosso selo infantil multiplicou-se. Hoje arrisco dizer que a Letrinhas representa não só um mercado importante, como vem recebendo muito carinho e afeição.

Falando em afeto, Júlia e Pedro, meus filhos, nasceram praticamente junto com a Letrinhas e hoje são dois grandes, imensos, adultos. Pedro toca os Clubes de Leitura da Companhia das Letras e trata de criar novos leitores em todos os lugares que encontra: nas livrarias, nos asilos, nas prisões e nos abrigos de crianças. Leitura não é privilégio; é direito, e é a isso que ele se dedica.  Júlia é hoje publisher de uma  série de selos do Grupo Companhia, entre os quais se inclui a Letrinhas. Ela já está na editora há quinze anos, e a Letrinhas virou sua morada, sua primeira âncora, seu local de escolha e eleição. Sob outro ângulo, Júlia é também uma editora sem limites ou fronteiras. Sem pejas ou restrições, para ela todo texto merece ser lido, e não existe livro bom que não possa ser publicado.

Enfim, nunca fui partidária da ideia de que crianças precisam ler histórias que contenham, via de regra, “finais felizes”. Enquanto fui editora da Letrinhas me comprometi, inclusive, com esse tipo de literatura que não devolve apenas o que dela se espera. Nosso mundo anda difícil, e não é preciso fazer da literatura infantil um mundo apartado e isolado das ambiguidades, tensões e desafios que experimentamos. No caso desse artigo, porém, e na história da Companhia das Letrinhas, temo que vá cair em contradição.

Termino, pois, em ritmo de fábula e com um sonoro “vivemos felizes” e (espero) “para sempre”! Vida longa à Companhia das Letrinhas, que faz 25 anos.

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Lilia Moritz Schwarcz é professora de Antropologia da Universidade de São Paulo, global professor em Princeton, curadora adjunta para histórias do Masp e (o mais importante) parte da equipe afetiva da Letrinhas. 

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