Como escolher o acervo para a sala de aula

13/03/2019

 

"Início de ano é hora de rever o acervo de livros nas escolas. Avaliar o estado dos exemplares e ver o que precisará ser reposto, selecionar novos títulos,  lançamentos e obras que possam dialogar com as novas propostas de trabalho. É preciso também considerar quais foram os títulos preferidos dos anos anteriores e que necessitam de mais exemplares", explica Ana Carolina Carvalho, formadora de professores e integrante do Instituto Avisa Lá. E o que mais seria necessário para criar em sala de aula um ambiente recheado de livros e, claro, repleto de leitores?

 

Ilustração Marcelo Tolentino

 

Para responder a essa questão que não é nada simples, convidamos quatro especlalistas em educação e leitura: além de Ana Carolina Carvalho, Camila Feltre, professora e autora do livro É um livro...? Mediações e leituras possíveis, Denise Guilherme, educadora e idealizadora do projeto A Taba, e Sandra Medrano, coordenadora pedagógica da Comunidade Educativa CEDAC e da Revista Emília. As pesquisadoras, que inauguram no Blog da Letrinhas a seção Sala do professor, compartilham orientações sobre quais os principais critérios para a escolha dos livros, como contar com a participação dos alunos nessa seleção e como criar o espaço adequado para os livros e para a leitura.

 Confira a seguir dicas imperdíveis desse quarteto de especialistas!

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Critérios de escolha

"Se eu pudesse elencar três principais critérios para a escolha de um acervo, eu colocaria: qualidade, diversidadee representatividade", diz a idealizadora de A Taba. Diversidade, aliás, é citada pelas quatro especilistas: destacada como palavra norteadora na escolha de um acervo. Diversidade de temas, autores, editoras, materialidades. Considerando que o acervo pode ser entendido como um "recorte do mundo letrado e das culturas do escrito", como define Sandra, até os temas tidos como delicados para crianças devem ser incluídos, afirma Camila. É a partir do contato do aluno com esses temas que o educador poderá propor conversas e discussões sobre outros modos de pensar e perceber a realidade em que está inserido.

Sandra, assim como Denise, também chama a atenção para a qualidade dos materiais, tanto no que diz respeito ao conteúdo e à linguagem, quanto no que está relacionado ao cuidado editorial. E, especificamente no quesito cuidado editorial, Camila ressalta que tal esmero com um projeto gráfico bem elaborado pode "ampliar a ideia de livro". Essa mudança de perspectiva acerca do livro instiga o jovem leitor, que passa a entender a leitura como uma investigação. Por fim, a representatividade se relaciona com a diversidade, ao passo que trazer livros diversos pode implicar um contato com narrativas, personagens e autores que representem grupos minoritários, como mulheres, negros, refugiados ou indígenas.

Sobre a questão temática, no entanto, Denise explica que trabalhar a literatura relacionada a outras disciplinas pode ser perigoso. Também corrobora com a ideia de que a literatura não tem valor em si mesma e precisa estar atrelada a um projeto temático do bimestre, por exemplo. "Parece que a literatura é uma coisa ligada à vida escolar, que você lê o livro de literatura para fazer uma prova, para aprender sobre um determinado tema, para melhorar seu comportamento e aí você não percebe que literatura é arte, é fruição e que você lê para alimentar seu espírito, para você se preencher de cultura e não de soluções para problemas da vida prática ou para conteúdos relacionados à escola."

 

Faixa etária

É unanimidade entre as especialistas que categorizar o acervo por faixa etária não é uma das soluções mais adequadas. Isso porque a faixa etária não abrange o repertório de cada uma das crianças. E, muitas vezes, o que orienta a classificação dos livros é justamente esse repertório cultural e linguístico adquirido a partir das experiências de cada um dos leitores. "Uma criança de 8 anos que mora em uma cidade grande como São Paulo é a mesma criança de 8 anos que vive em uma zona rural? Quais são as suas semelhanças? E as suas diferenças?", Ana Carolina questiona. Relacionar esses dois fatores, leitura e faixa etária, é forçar uma relação que não tem pontos em comum diretos. Como já apontado anteriormente, a leitura envolve questões muito mais subjetivas.

A organização por faixa etária também pode significar uma limitação para a leitura, como Camila explica: "Por exemplo, um livro de imagem (aqueles de narrativa visual, geralmente sem texto) pode ser indicado ainda hoje em bibliotecas ou livrarias para crianças ainda não alfabetizadas. Isso distancia um leitor letrado da leitura daquele livro. Como educadora e mediadora, presenciei leituras profundas, abarcando diferentes pensamentos e interpretações de livros como Espelho, livro de imagem da autora coreana Suzy Lee, por crianças de diferentes faixas etárias, adolescentes e adultos". 

 

Experiência de leitura

Na última pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, feita em 2015, a figura do professor teve lugar de importância no que diz respeito à influência para uma formação leitora, como recorda Ana Carolina. Representando 7% de uma amostra de 5.012 pessoas que declararam ter sido influenciadas por alguém para gostar de ler. Mantendo o cuidado para não restringir os títulos do acervo ao "gosto" do professor, como salienta Camila, é positivo que educadores levem em conta e compartilhem suas experiências de leitura.

"Um professor que explicite seu vínculo afetivo com uma obra, um autor ou uma autora, um gênero. Que compartilha sua experiência leitora com os estudantes, suas descobertas, seus encantamentos, suas surpresas e indignações, com o autor, com a personagem, com o final da história... é um professor que pode – com mais chances – envolver seus alunos nas práticas de leitura. Isso porque consegue estabelecer relações, sabe falar e entender os comportamentos típicos de leitores e, assim, trazer para próximo dos alunos o que significa, de fato, ler", argumenta Sandra.

 

Ouvir os estudantes

“O que eles gostam de ler? Quais são as suas referências? Há gêneros, autores e coleções preferidas? É comum, sobretudo entre jovens leitores, certas ‘ondas’ de leitura. Por que não prestar atenção nisso”, questiona Ana Carolina. Ela explica: “Muitas vezes, temos receio de compor a biblioteca da escola com obras no estilo best-sellers; no entanto, um leitor pode muito bem circular entre títulos da moda e outros mais perenes”. A educadora sugere a possibilidade de aproveitar certas “ondas” de leitura para apresentar títulos que tratem do mesmo tema, mas escritos em outros tempos, com outras formas literárias. Um exemplo, ela lembra, é uma professora de São Paulo que aproveitou o interesse dos alunos pelo universo dos vampiros para ler Drácula, de Bram Stoker, promovendo uma ampliação de repertório e boas comparações entre a obra da moda e o clássico dos vampiros.

Sandra concorda que parte da escolha do acervo pode contar com a participação dos alunos, iniciativa que auxilia o educador a conhecer preferências e repertórios da turma. Tal estratégia cria "oportunidade para que [os alunos] falem sobre seus livros”, proporcionando “um espaço de troca de leitor para leitor, permitindo ao professor estabelecer relações com outros livros menos conhecidos dos alunos, mas que seja interessante que conheçam e assim ampliem suas experiências leitoras". “Dessa forma, o professor pode sugerir que um aluno leia um livro porque tem um tema semelhante ao que ele trouxe ou indicou ou porque se trata de um gênero que percebe ser do interesse do alunos”, explica. 

Camila faz coro: defende que "um espaço de discussão e diálogo deve ser prioridade no momento de escolher um livro" e, portanto, que é importante a participação dos alunos na etapa de escolha do acervo. Para a pesquisadora, esse ambiente aberto à discussão deve ser mantido após a leitura desses livros para que se entenda quais foram os efeitos do processo literário, nos alunos e no professor. Ela lembra o pesquisador francês Daniel Pennac para enfatizar que a experiência de leitura não acontece se a forma imperativa do verbo ler prevalecer. “Para o autor, alguns verbos não suportam o imperativo, como ‘ler’, ‘amar’ e ‘sonhar’. É possível tentar: ‘Leia!’, mas o resultado será nulo.”

Já Denise ressalta a importância de “incluir livros que as crianças tenham vontade de ler” e “trazer leituras que elas gostariam de conhecer”, mas faz algumas ressalvas quanto aos livros mais comerciais, como os de Youtubers ou de personagens da TV. “Eles não deveriam ser o foco. A esse tipo de livro as crianças têm acesso fora da escola. Então a escola teria que contemplar outras experiências que talvez elas não tivessem acesso sem sua ajuda." “Gosto da ideia da participação da criança, mas com a curadoria da escola”, indicando quais obras pode oferecer e, quando preciso for, dizer: “Olha, legal sua sugestão, mas esse livro tem fora da escola” ou “esse é um livro que não está alinhado com o projeto político pedagógico da escola e por isso a gente não vai comprar”.

 

Organização do espaço

Permitir que as crianças participem da organização do acervo facilitará o acesso ao conteúdo, além de garantir uma busca mais autônoma pelos títulos ali dispostos. Muito mais do que prezar pela estética do ambiente, que, claro, precisa ser convidativo e aconchegante, é importante proporcionar que a disposição dos livros "faça sentido para as pessoas que usam aquele acervo", como pontua Denise. O mobiliário, ela reforça, precisa garantir a acessibilidade às obras oferecidas no espaço. 

E como transformar o espaço agradável ao leitor? Um dos pontos centrais é ganantir que o lugar tenha uma luminosidade adequada para leitura e, como Ana Carolina propõe, traga "murais com dicas de leitura, obras adquiridas, livros mais emprestados etc". Em alguns casos, é interessante até criar cantos de leitura ou instalar estantes de livros nas salas de aula, até mesmo nas séries mais avançadas como as do Ensino Fundamental e Médio, quando isso já não é mais tão recorrente, ela mesma completa. 

Ainda sobre a organização do espaço, Sandra recomenda que haja um acompanhamento do professor sobre quais materiais são mais ou menos acessados. Assim, é possível entender as preferência e “chamar a atenção para determinados livros que nunca foram acessados”, trazendo tais obras para as rodas de leitura ou momentos de leitura em voz alta. Um último ponto levantado pela especialista diz respeito aos cuidados com os livros. O manejo do material naturalmente pressupõe que ele se desgaste de maneira mais rápida. Por isso uma atividade sugerida é incluir os alunos nos processos de restauração de algumas das obras, promovendo a troca de uma capa ou a colagem de páginas. Mas, claro, algumas restaurações requerem o trabalho de um especialista na área.

"Devemos considerar o funcionamento das pessoas na contemporaneidade, em que os aparelhos digitais estão sempre à mão e as crianças visualizam seus usos em muitos momentos de seu dia a dia, o que lhes permite acesso fácil e inserção automática nesse universo. Algo similar poderia acontecer com o livro e a leitura. Se crianças tiverem acesso aos livros em muitos momentos, em diversos espaços, que veja pessoas de seu entorno em práticas de leitura de forma tão envolvente quanto em seus celulares, nas redes sociais, mais chances terão essas crianças de se interessarem pelo livro e pela leitura, e daí, quiçá, se encantarem e se tornarem leitoras", complementa Sandra.

 

Livros digitais

"Texto não é só no papel", Ana Carolina enfatiza. "Hoje, mais do que nunca, é preciso formar esse leitor múltiplo: do papel, do digital, um leitor que acessa links e que sabe selecionar conteúdos da web", acrescenta. Sobre os recursos e as ferramentas que compõem esses suportes, Camila aconselha que sejam apresentados ao leitor como outra possibilidade de leitura. Sandra reitera sua ideia de entender o acervo como um recorte do mundo e conclui: "Se o leitor hoje – e ainda mais no futuro – terá acesso a diferentes suportes, é preciso que a escola também seja um espaço em que isso esteja disponível, de maneira a apoiar os leitores a serem críticos e autônomos também nesse tipo de uso".

 

Clássicos X contemporâneos

Por fim, Ana Carolina ressalta que é necessário haver "um equilíbrio entre produções clássicas e contemporâneas" e aponta fatores que ajudam a preservar a qualidade dessa seleção. Por exemplo, vale analisar se, no caso das obras clássicas, serão lidas versões integrais ou adaptadas, se as adaptações escolhidas foram escritas de acordo com o estilo da linguagem original ou não. Camila adiciona: "Perceber como as histórias tradicionais estão presentes nas contemporâneas também pode ser maravilhoso, não?". Estabelecer uma relação entre duas obras produzidas em períodos diferentes pode tornar a leitura dos escritos clássicos, muitas vezes com uma linguagem incomum hoje em dia, mais tranquila.

 

 

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