Como cultivar uma botânica imaginária

21/03/2017

Por Mariana Zanetti

Sinto que ultimamente as plantas têm me perseguido. De fato, nos últimos três anos, desde histórias que têm na mata seu cenário principal até estampa com tema "selva", a demanda por trabalhos que exigem que eu desenhe plantas cresceu muito e meu prazer em realizá-los, também. Na verdade, fico em dúvida se elas me perseguem ou se sou eu que as persigo... Seja como for (e de quem for), essa perseguição só tem me trazido alegrias.

No final do ano passado, recebi um convite muito especial: ocupar, junto com a ilustradora portuguesa Catarina Sobral, dentro da programação de Lisboa Capital Ibero-Americana de Cultura 2017,  os espaços de uma biblioteca em Lisboa. O projeto completo, com curadoria do ilustrador português André Letria, chama-se 3 ao cubo: são três bibliotecas, ocupadas por três ilustradores portugueses, em parceria com três  ilustradores iberoamericanos. Para cada biblioteca, uma dupla e um tema.

O nosso tema? Botânica Imaginária!

Minha alegria com o convite e com o tema, como é possível imaginar, foi enorme. Se criar plantas tem sido recorrente no meu trabalho, fazer isso numa escala muito maior do que vinha fazendo, num espaço muito mais complexo do que a bidimensionalidade do papel e dialogando com a linguagem de outra ilustradora, que eu tanto admiro, foram desafios gigantes que aceitei com o maior entusiasmo.

Processo 

Entre as primeiras conversas e a inauguração do projeto, foram cerca de três meses. De longe pudemos, a Catarina e eu, definir nosso plano, fazer esboços, projetar alguns objetos. No dia 11 de janeiro, desembarquei em Lisboa e, durante dez dias, trabalhamos intensamente para transpor as ideias do papel para as paredes e os espaços da biblioteca. 

Foto Mariana Zanetti

Foto Catarina Sobral

A Biblioteca dos Coruchéus, onde trabalhamos, fica num antigo casarão, lindíssimo, rodeado por um jardim, num bairro residencial de Lisboa. Nos dias que lá estivemos, vi adultos e crianças usarem ativamente seus espaços e funcionários cuidarem dela com o mesmo carinho que alguém cuida de sua própria casa. Havia uma apreensão, me pareceu, em relação às mudanças que faríamos nesse espaço que fazia parte do cotidiano de muitos deles. Mas, no decorrer do trabalho, fui notando sinais de satisfação em relação ao jardim que fazíamos crescer a cada dia lá dentro. 

Foto ©Haikai Photos

Para darmos conta do trabalho, tivemos a ajuda preciosa dos estudantes do Ar.Co, uma escola de artes independente localizada em Lisboa. Foram 7 dias de trabalho intenso e alguma bagunça.

Foto Maria Branco

No domínio do imaginário

Nosso ponto de partida foi investigar e descobrir novas famílias e espécies que fizessem parte do reino Botânico Imaginário (Plantae Imaginarius). Nas nossas primeiras conversas, descobrimos dezenas delas, desde as Fluidophyta, família que engloba as espécies de Plantas Líquidas(Liquidoplast) e Plantas Gasosas (Gasoplast) até a família das Plantas Voadoras (Liberum Volatum). Não é difícil imaginar quantos nomes de espécies achamos na cabeça da Catarina, ela é especialista em descobrir novas palavras! 

No final, ocupamos quatro espaços da biblioteca com as seguintes famílias botânicas: Tamanhostyla (plantas macro e micro) Sentidozoa (espécies que sobem e descem), Luzophytes (espécies luminosas) e Chordatidia (as plantas-centauro). Conectando essas zonas taxonômicas, a Florestophyta, um corredor com espécies diversas. E, para situar os visitantes, uma espécie rara da família das Ductumphyta (plantas-setas) na entrada. 

Foto ©Joana Berrones

Tamanhostyla: nessa zona taxonômica, encontram-se as plantas que não se veem a olho nu. Seja porque, gigantes que são, situam-se em outra galáxia (as Plantas-Planeta), seja porque minúsculas e, portanto, visíveis apenas com o auxílio de um microscópio. Na biblioteca, as primeiras podem ser vistas num mapa científico pendurado na zona infantil. Próximo dele, ainda na mesma sala, construímos um microscópio mágico: ao entrar nele, somos reduzidos ao tamanho de uma tartígrada (menos de 0.5 milímetros), condição que nos permite ver as plantas micro e toda sua diversidade em tamanho "real" (para uma tartígrada). Uma boa surpresa foi verificar, no dia da inauguração, que o microscópio mágico funciona também em adultos, ao contrário do que imaginávamos quando o concebemos. Cerca de 20 humanos, com uma média de 1,70 cm de altura, entraram simultaneamente e, graças à redução da suas dimensões, couberam todos com certa folga dentro do microscópio.

Foto ©Pato Lógico 

Sentidozoa: percebendo o potencial topográfico de uma das zonas da biblioteca, inserimos ali algumas amostras das espécies que sobem e que descem. Rapidamente, apesar das paredes rugosas demais que dificultaram sua adesão, elas se espalharam pela sala, subindo as paredes até o nível do mezanino, vindas das janelas e do chão. Entretanto as que descem se esparramaram escada abaixo com suas flores gigantes penduradas, intrometendo-se no meio das estantes das enciclopédias.

Foto ©Haikai Photos

Luzophytes: trata-se de uma família rara de plantas, que não usam a luz do sol para fazer fotossíntese, mas, ao contrário, emitem sua própria luz. Precisaram ser cultivadas em outra área mais apropriada para, a seguir, serem cuidadosamente transportadas e inseridas numa zona escura da biblioteca, onde elas floresceram luminosa e satisfatoriamente.

Foto ©Haikai Photos

Chordatidia: essa família de híbridos de plantas e animais, as plantas-centauro, também foram cultivadas em ambiente mais apropriado ao seu nascimento e desenvolvimento.  O transporte e a inserção no novo meio foi a parte que nos causou mais apreensão por ser a única área externa e, portanto, menos controlada em relação ao clima. Mas tudo correu perfeitamente bem e um dos espécimes do Cyprinus Hyacinthus até floriu no dia da inauguração, sinal de perfeita e feliz adaptação.

Foto ©Joana Berrones

Florestophyta: nas zonas de transição entre as específicas, nos dois andares da biblioteca, foram cultivadas com sucesso espécies diversas, nunca antes vistas juntas (nem separadas).

 

Fotos ©Haikai Photos

A procissão

Enquanto nosso jardim florescia, as outras duas bibliotecas eram tomadas por transeuntes e geografias imaginários, que conheci no dia da inauguração das três bibliotecas. Que alegria ver o projeto todo tão lindamente completo! A inauguração foi uma espécie de "procissão", em que percorremos as três bibliotecas.

Começamos pela biblioteca Orlando Ribeiro, ocupada pelo português André da Loba e pelo chileno Cristóbal Schmal, cujo tema, numa referência ao geógrafo que dá nome à Biblioteca, era Geografia Imaginária. Tão lindo quanto o tema foram as personagens que vi nas paredes, dezenas delas, inspiradas em viagens fantásticas e desenhadas com uma liberdade e espontaneidade que me lembraram anotações de cadernos de viagem. Na zona infantil, um belíssimo e enorme homem-atlas ocupava uma parede inteira, por onde traços de fio de algodão vermelho criavam trajetos e coordenadas de territórios imaginários. Minha vontade era poder viajar algumas horas por eles. 

Foto Cristóbal Schmal

Foto ©Joana Berrones

Mas não havia tempo para isso e dali corremos para a nossa biblioteca, para apresentar nosso jardim.

Foto ©Haikai Photos

Por último, seguimos para a Biblioteca Camões, no centro de Lisboa, que ocupa o primeiro andar de um edifício antigo, cujas salas com pé-direito alto e mobiliário de madeira antiquíssimo já abrigaram um cartório de notas há mais de um século. Lá, a Maria Remédio, portuguesa, e a Martina Manyà, espanhola, criaram transeuntes gigantes e pequenos, de todas as idades, lindas personagens que percorrem a biblioteca como percorremos nossas vidas: da barriga da mãe até a velhice, cada sala trazia uma fase da vida. Numa das salas, eu me senti como se estivesse dentro de um desenho, cercada pelas personagens de uma história... Cada uma vivendo sua vida imaginária, como eu vivia a minha, real, ali com elas. Poderia até começar uma conversa com algum daqueles desconhecidos coloridos.

Foto ©Joana Berrones

O percurso acabou ali na Camões, mas as exposições seguem, ao menos, até dia 30 de junho, quando terminam os eventos relativos ao ano de Lisboa Capital Iberoamericana. Eu, da minha parte, espero poder voltar antes disso para dar uma espiada novamente nos três universos imaginários que foram criados ali.

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Mariana Zanetti é formada em arquitetura pela USP. Antes de ser ilustradora, trabalhou com cenografia para teatro e cinema. É autora de O leão e a estrela e coautora de Como vou?, entre outros.

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