Cego voltará a enxergar numa nação leitora

26/10/2016

Por Ilan Brenman

Neste ano foi divulgada a quarta edição da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, um raio-x preocupante da relação dos brasileiros com os livros e suas leituras. Todos já estão cansados de saber do vínculo entre índices de leitura de uma nação e seu IDH, índice de desenvolvimento humano. Os países no topo do IDH em 2015: Noruega, Austrália, Suíça, Dinamarca, Holanda etc. são aqueles com melhores índices de leitura. E o inverso é totalmente verdadeiro, nas piores posições estão aqueles com índices pífios de leitura. Muitos dos países desenvolvidos conseguiram resolver a questão do analfabetismo nos séculos XIX e XX , nós ainda o estamos combatendo em pleno século XXI. 

Para entender muito do que se passa no nosso país, basta se deter em alguns dados recolhidos na pesquisa citada acima. A pesquisa relata que 44% da população brasileira não lê e 30% nunca comprou um livro. O mundo ao nosso redor é repleto de palavras escritas: leis, manuais técnicos, redes sociais, imprensa, letras de música etc. A leitura, principalmente a literária, possibilita uma compreensão maior de todo o nosso entorno, conseguimos entender que existem várias camadas em cada texto escrito, assim somos mais donos do nosso destino. Lembro bem de um relato dado em 2002 por um agricultor do Maranhão, ele falava para o Jornal Nacional da Rede Globo: “Eu acho que o saber  é uma coisa muito ótima. Eu sinto muito que sou um cego da vista limpa. Eu estimava que os meus  filhos enxergassem a mais do que eu”. Somente como uma nação leitora os cegos voltaram a enxergar.

A pesquisa aponta qual o livro mais lido entre os que se consideram leitores no país. O título é o mesmo das outras edições: a Bíblia. Considero a Bíblia um texto fundante do Ocidente, um repertório cultural inestimável, mas, ao mesmo tempo, vejo com preocupação sua exclusividade entre os leitores.

Antes do século XV, a Bíblia era o texto mais importante na vida de diversos povos europeus, que eram, na sua grande maioria, analfabetos e necessitavam da igreja para ouvi-la e compreendê-la. O clero monopolizava o conhecimento, sua disseminação e sua interpretação. Manter o povo refém da leitura clerical do mundo era um poderoso instrumento de controle social.

Porém tudo mudou drasticamente com dois grandes fatos: a criação da prensa de Gutemberg (século XV), com a multiplicação de livros e seu barateamento, e a Reforma Protestante de Lutero (século XVI), que tirou da igreja o monopólio do conhecimento. Lutero dizia que todos podiam ler a Bíblia individualmente, sem a necessidade de intermediários e na sua língua materna, não em latim. Isso foi uma revolução no Ocidente.

As comunidades que abraçaram o protestantismo começaram a comprar seus próprios livros e, para lê-los, era necessário alfabetizar todas as crianças, jovens e adultos. Quanto mais alfabetizados, mais curiosos e inquietos ficavam os sujeitos e assim se disseminavam outros tipos de leituras que provocavam mais interesses, mais textos, mais descobertas.... Tal tsunami textual contagiou várias outras comunidades, mesmo as não protestantes.

Precisamos incentivar mais a população a descobrir outros textos além da Bíblia. Não há necessidade de excluí-la, mas sim de ampliar os repertórios e esperar que o ciclo que ocorreu no passado europeu se repita de algum modo por aqui.

Outros dois dados que me chamaram muita atenção na pesquisa foram: a mãe como uma figura importantíssima no incentivo à leitura e o balanço de que 50% dos professores entrevistados não tinham lido nenhum livro nos últimos meses.

As mães sempre tiveram um papel importantíssimo no incentivo à leitura. Junto ao aleitamento materno, deveríamos alimentar os filhos também com histórias lidas e contadas de boca, o que pode contribuir e muito em aproximá-los do mundo dos livros.

Sobre os professores, precisamos urgentemente mudar esse quadro. Assim como a bola é o objeto do jogador de futebol, as sapatilhas, da bailarina, a panela, do cozinheiro, o LIVRO é o objeto do educador. Sem a presença dele no seu cotidiano será impossível formar leitores nesse país. Sei das dificuldades financeiras da carreira, da precariedade dos equipamentos etc., mas sei também que não podemos semear palavras nos outros sem que nós mesmos não sejamos semeados constantemente por nossas leituras.

Ilan Brenman nasceu em Israel, em 1973, mas mora no Brasil desde 1979. Psicólogo formado pela PUC de São Paulo, Mestre e Doutor pela Faculdade de Educação da USP, circula pelo país e exterior ministrando palestras com temáticas educativas e culturais. É autor de mais de 70 livros, diversos deles premiados, e suas publicações já foram traduzidas para: França, Itália, Suécia, Dinamarca, Alemanha, Portugal, Espanha, Polônia, México, Coreia e China. O site oficial do escritor é www.ilan.com.br

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