As lembranças do menino Joãozito

17/04/2019

 

Para escrever a obra-prima Grande Sertão: Veredas, que acaba de ganhar uma edição especial pela Companhia das Letras, o mineiro João Guimarães Rosa (1908-1967) andou pelo sertão de sua infância acompanhando uma comitiva de boiadeiros nos idos de 1952, numa incursão lendária, registrada em minúcias em cadernetas que carregava no pescoço. O romance, que aborda grandes questões da humanidade, como amor e sofrimento, o bem e o mal, a vida e a morte na voz genuína de Riobaldo, não é tarefa das mais simples para leitores adultos, quiçá para os mais jovens. É possível, no entanto, introduzir crianças e adolescentes no universo roseano a partir dos relatos da infância do próprio autor, um “menino quieto” que virou um dos mais importantes ficcionistas da literatura mundial.

 Joãozito, o primeiro de seis filhos do casal Francisca (dona Chiquitita) e Florduardo (seu Fulô), nasceu no dia 27 de junho de 1908, em Cordisburgo, interior de Minas Gerais. O contexto em que viveu seus primeiros anos de vida, em contato com os clientes que frequentavam a venda do pai, em frente à estação de trem da cidadezinha, estimulou sua imaginação. O movimento dos viajantes que passavam pelo local permitiu que o menino ouvisse as mais variadas histórias. Além disso, desde cedo, ele se interessou pela leitura. Autodidata, aprendeu a ler antes mesmo de começar os estudos na escola. Quando descobriu que era míope, recebeu a recomendação de se afastar dos livros, para não forçar a vista. Sabendo disso, escondia-se para ler ou então lia de madrugada, à luz de vela.

 

Ilustração Marcelo Tolentino

 

Certa vez, chegaram à venda do pai algumas revistas coloridas, que traziam figuras de animais como elefantes, tigres e baleias. Como de costume, Joãozito foi logo ler as novidades. Para sua surpresa, não avançou na leitura. Pediu ajuda para os adultos, mas nenhum deles conseguia ler aquelas linhas. Afinal, na pequena cidade, ninguém conhecia o idioma francês. Um compadre de seu Fulô, no entanto, presenteou o garoto com uma gramática e um dicionário da língua francesa. Tempo depois, com a chegada do Frei Canísio a Cordisburgo, o pequeno leitor recebeu ajuda para aprender francês, além do holandês, língua natal do religioso. 

Aos dez anos, João passou a residir e a estudar em Belo Horizonte. "Com a mesada, Joãozito comprava empadinhas e garrafas de limonada, indo se refugiar muitas vezes na Biblioteca Pública de Belo Horizonte para devorar os livros. Certa vez, alguém se queixou daquele ‘piquenique’ ao encarregado, que já havia se tornado amigo de Joãozito, e que retrucou: ‘? O senhor já viu o que o menino está lendo? Vai ver de perto... A gente não tem coragem de impedir que o menino engordure um livro tão difícil!’, conta uma de suas filhas, Vilma Guimarães Rosa, no livro Espaços e caminhos de João Guimarães Rosa: dimensões regionais e universalidade (ed. Nova Fronteira).

 

Carta enigma escrita por Joãozito a sua irmã; fonte: Relembramentos: João Guimarães Rosa, meu pai, de Vilma Guimarães Rosa (ed. Nova Fronteira)

 

Apesar de ter parecido um momento de muitas descobertas, em uma entrevista concedida ao jornalista paraibano Ascendino Leite em 1946 e publicada no jornal A Noite, do Rio de Janeiro, Guimarães Rosa deu a seguinte declaração a respeito de sua meninice: "Não gosto de falar da infância. É um tempo de coisas boas, mas sempre com pessoas grandes incomodando a gente, intervindo, comentando, perguntando, mandando, comandando, estragando os prazeres. Recordando o tempo de criança, vejo por lá um excesso de adultos, todos eles, mesmo os mais queridos, ao modo de soldados e policiais do invasor, em pátria ocupada. (...) Gostava de estudar sozinho e de brincar de geografia. Mas, tempo bom, de verdade, só começou com a conquista de algum isolamento, com a segurança de poder fechar-me num quarto e trancar a porta. Deitar no chão e imaginar histórias, poemas, romances, botando todo mundo conhecido como personagens, misturando as melhores coisas vistas e ouvidas [...]".

Miguilim, protagonista da novela Campo geral, escrita em 1956, é um garoto que assim como o escritor tem uma visão diferente do mundo em relação aos adultos, que o permite enxergar e compreender com a imaginação e a poesia. Além de perceber a beleza onde muitos não veem, como no sertão. Em Campo geral, a experiência da infância é o tema central. Ainda na entrevista a Ascendino, Rosa admite uma ambição: “Um dia hei de fazer um pequeno tratado de brinquedos para meninos quietos”. Tal tratado, infelizmente, não foi escrito, mas algumas pistas dele foram deixadas. O próprio Grande Sertão escrito a partir de anotações em uma caderneta, como um menino que descobre o mundo e brinca de geografia.

 

 

Compartilhe:

Veja também

Voltar ao blog