A carpintaria da Morte

06/04/2017

Por Ernani Ssó

 

“A literatura infantil é aquela que até as crianças podem ler. É um ideal literário a que aspiro.” (Michel Tournier)

 

Muitas crianças me perguntam como tive a ideia de escrever sobre a morte e esperam, dá pra ver na carinha delas, uma resposta surpreendente ou pelo menos romântica. É compreensível, pouca gente fala sobre a morte, muito menos com crianças, exceto pra oferecer as portas de emergência alardeadas pelas religiões. Naturalmente há várias coisinhas embutidas nisso – entraremos em detalhes quando a conversa nos der as deixas.

Temo ter decepcionado essas crianças. Não devo o nascimento de Contos de morte morrida (2007) a nenhum tipo de inspiração ou acaso providencial e devidamente mirabolante. Depois de escritos Macacos me mordam! e Amigos da onça, a Júlia Schwarcz achou que eu poderia escrever histórias sobre outros bichos. Mas meu bestiário tinha acabado. Fiz então uma lista dos assuntos que aparecem mais nos contos tradicionais, como gigantes, diabos, fantasmas e belas e feras, porque a ideia era de volumes temáticos. Nela entrou a morte. Sim, sem destaque, tanto que escolhi continuar com os gigantes, porque eles assombraram muito mais a minha infância e porque numa semana de pesquisa eu tinha material pra dois livros.

A edição foi adiada por um motivo simples: o ilustrador Nelson Cruz – sugestão minha aprovada com apitos e tambores pela Júlia e a Helen Nakao – não estava disponível por meses.

Então encarei a morte, tema que me interessa cada vez mais, a cada novo aniversário. Acho que aqui entra uma das nuances da curiosidade das crianças: a morte não teve um tratamento especial. Não me tornei solene, não falei mais baixo, não abandonei o humor e nem o exagerei. Penso que escrevi como sempre, em busca do modo mais natural possível. Se pareço me vangloriar, estou dando a impressão errada, porque isso tudo não passa do feijão-com-arroz de qualquer contador de histórias. Lembre-se da avó de García Márquez: contava coisas extraordinárias como se fossem as do dia a dia, com as palavras do dia a dia. Coisa, por sinal, que meu pai também fazia, e que tratei de repetir. A parte difícil eu ganhei grátis: os enredos, a estratégia narrativa e a imagem da Morte, agora com maiúscula – estamos diante de um ser.

Mexo pouco nos enredos, porque os contos, como as pedras, rolaram por séculos e poliram a maior parte das arestas. Mas às vezes a gente topa com excessos ou lacunas, com transgressões à lógica interna e com a colagem de cenas de outras histórias em que se notam demais as emendas ou mesmo incongruências. O mais perfeito dos contos pode ser estragado dependendo da narração.

Minha participação mais ativa é na criação da atmosfera, na manutenção do ritmo, o que inclui cortes e sínteses às vezes radicais pra agilizar o que se conta, e na invenção de pequenos detalhes circunstanciais que, espero, deem graça e verossimilhança à história. Um detalhe inventado por mim, que caiu no gosto das crianças, é que a Morte, a do capuz e gadanha, nunca senta. Inventado? Não, eu descobri por dedução – ela não trabalha vinte e quatro horas por dia? Note-se ainda que busco não me afastar da tradição dos contos, do seu ambiente. Acho detestável, por exemplo, a opção da Disney de dar ao gênio de Aladim as características de um apresentador de programas de televisão tipo Sílvio Santos. O fato de não ter graça só aumenta a sensação de uma interferência indevida.

Sabe-se, os contos descobriram um jeito indireto de falar, com leveza e humor, das coisas mais atrozes, como abandono, abuso, orfandade – a lista é grande. Em primeiro lugar, nos melhores contos, nunca achamos um discurso, mas sempre e apenas uma história – e nessa história nada é abstrato. A princesa não fica triste, ela chora. O príncipe não é um canalha, um feitiço o transforma em fera. O pai não é um abusador, é um ogro canibal. A mãe, idem, só que bruxa. Enfim, em vez de palavras, temos imagens e cenas – e muitas vezes imagens e cenas lindas e prontas pra serem interpretadas conforme a necessidade do freguês.

Quando comecei a pesquisa para os Contos de morte morrida, me dei conta de que a Morte era apenas outra personagem, como a bruxa ou o ogro, tanto que vinha em maiúscula. Tive a comprovação disso: perguntei a crianças de cinco pra seis anos se a Morte andava por aí encapuzada e com uma gadanha. Claro que não, foi a resposta geral. Elas sabiam que essa Morte, em seu belo modelito medieval, é apenas uma imagem pra podermos aprender a lidar com a outra, a que se escreve com minúscula.

Se eu apresentasse a morte como ela é, quer dizer, sem cara e sem endereço, ficaria apavorante, e eu não quero apavorar ninguém. Acho que as histórias têm de instalar um universo paralelo, como o brinquedo, onde você pode experimentar os medos e os desejos, onde você pode fazer de conta que vive o futuro ou o horror. Negar às crianças histórias que proporcionem isso devia ser um crime previsto por lei, devia estar no estatuto da criança e do adolescente.

Nenhuma criança me perguntou até hoje se acredito em Deus ou em vida após a morte. Mas mais de uma me perguntou por que todos morrem no final, por que não salvei nenhum personagem. Respondi sempre com outra pergunta: você conhece alguém imortal? O mais divertido é que muitas crianças, ao verem os truques dos personagens pra escapar da Morte, torcem contra. Apenas crianças de pré-escola disseram ter algum “medinho”. Uma menina de oito anos, por exemplo, me disse que gostou do livro porque não era pra criancinha. Precisa ver o desprezo com que a palavra criancinha soou.

Aí está um ponto que talvez valha a pena ver de perto. O que é história pra criancinha? História muito boba, cor-de-rosa, sem conflitos ou grandes emoções? Numa palavra, primária? Ou em duas, primária e mentirosa? O certo é que essa menina não se sentiu enganada – até se sentiu exigida, como muitos colegas, e gostou de ser exigida. Phineas Taylor Barnum, o famoso trapaceiro e inventor do circo moderno, disse que ninguém nunca perdeu dinheiro por subestimar a inteligência do público. É verdade. Mas eu prefiro a aposta contrária. Em tempo: também não acho uma boa apostar na covardia.

Antes de seguir, preciso fazer uma confissão. Disse que apenas invento ou descubro pequenos detalhes, mas justo nos Contos de morte morrida há um conto de minha inteira responsabilidade – ou irresponsabilidade. Com a pesquisa pronta, senti falta de uma história sobre uma situação, digamos, caindo de madura. Como os contadores a deixaram passar por tantos séculos? Sim, pensei isso com alegria e escrevi o conto em minutos, fácil como uma galinha bota um ovo, na feliz expressão do Sérgio Faraco. Não dou o título, não, na esperança de que ele passe a fazer parte do folclore. Tenho me divertido, ao falar com as crianças, porque ninguém até agora descobriu qual é. Pior, é o preferido de muitas.

Adoraria dizer que, entre todos os meus livros, o Contos de morte morrida foi o mais divertido de escrever. Não é verdade. Meus contos sobre bruxas e diabos ganham de lavagem, como se diz. Mas o Contos de morte morrida é o que mais deu o que falar. Eu poderia contar dezenas de coisas que aconteceram em escolas que visitei. Mas fico nuns poucos fatos, assim mesmo com medo de que o egossauro ruja e abane o rabo de modo incontrolável.

1 – Uma professora, Itiane Mello, entrou em contato comigo porque queria me contar o que se passou na escola em que lecionava, em Novo Hamburgo, uma cidade próxima a Porto Alegre. Uma menina da quarta série do ensino fundamental morreu devido a um tumor na cabeça. Os colegas se sentiram atingidos em cheio e não falavam de outra coisa por meses. Um dia um menino descobriu na biblioteca um exemplar do Contos de morte morrida. Ele o leu e falou para os colegas. Foi uma corrida à biblioteca, com lista de espera e tudo. Itiane se deu conta do zunzum em sala de aula e pediu pra ver o dito livro. Interessada, ela comprou um exemplar e passou a comentar com seus alunos, que aos poucos deixaram de considerar um escândalo a morte da colega. Aproveitando o entusiasmo das crianças, comprou todos os meus livros e os distribuiu na turma.

Nessa escola havia uma atividade mensal interessante: por uma hora, as professoras trocavam de turma aleatoriamente. Numa dessas vezes, coube a Itiane uma sétima série, a turma considerada problema, mais indisciplinada e tal. Quando a professora voltou, uma hora depois, encontrou a turma silenciosa e disposta a continuar ouvindo os contos da Morte em vez de voltar à rotina de sempre. Segundo a Itiane, a bagunça não tinha durado muitos parágrafos. Dá pra perceber que ela é uma ótima contadora de histórias.

Foi assim que a Morte estendeu seus domínios pela escola toda, incluindo as professoras. Na esteira da Morte, foram os demais livros com bichos, bruxas, gigantes, fantasmas, belas e feras. Meses depois, quando fui convidado a falar com os alunos, uns oitocentos e poucos, a Itiane me avisou: eles são íntimos teus. Eu agradeci. Se houvesse mais professoras como a Itiane, eu seria amigo de metade do Brasil.

2 – Numa outra escola, quando avisaram que eu ia aparecer pra conversar, muitos alunos se perguntaram: como, ele não morreu? Eles acreditavam piamente no que digo na introdução: que a Morte veio pra me levar e fiz um pacto com ela, pedindo um prazo pra terminar suas histórias. Mas o melhor é que um menino achava que todos os escritores estavam mortos há muito tempo. Sua professora argumentou: então como continuam aparecendo livros novos? E ele: não são novos, são cópias, professora, cópias. Pensando bem, ele tem grande parte de razão.

3 – Às vezes temo que as crianças me levem a sério demais e pensem que sou um especialista em morte. A verdade simples é que as histórias não são sobre a morte, são sobre pessoas diante dela, reagindo e pensando cada uma à sua maneira. Há uma diferença aí, não? Eu não sei absolutamente nada sobre a morte ou a Morte – aliás, como o resto da humanidade. Mas isso me lembra a historinha do curta-metragem do Javier Recio Garcia, La dama y la muerte.

Numa escola, uma professora descobriu na internet o desenho e acessou para os alunos. Eles ficaram muito contentes não só porque gostaram, mas porque era sensacional que eu tivesse ganhado o prêmio Goya de 2009, tivesse sido indicado ao Oscar e fosse amigo do Antonio Banderas, um dos produtores. A professora disse que o filme não era meu. Foi um escândalo. Como não é dele? Se o negócio é a Morte, só pode ser dele. A Morte é o latifúndio do Ernani Ssó.

Acho isso divertido, mas me sinto incomodado. Em primeiro lugar, há outros autores que lidam com a Morte, como Ricardo Azevedo, que por sinal escreveu antes de mim. Em segundo, acho que deviam aparecer muitos outros. Quanto mais olhos olhando a Morte, mais chances de ela ser vista.

4 – Ao final de uma visita, numa escola localizada numa das mais pobres e violentas vilas de Porto Alegre, uma professora veio me contar como tinha descoberto meu livro. Um aluno não apareceu na aula pela manhã. Veio no outro dia, fora de horário, pra falar com ela: o pai tinha morrido e ele queria um livro que falasse da morte pra ver se entendia o que tinha acontecido. Como não achou nada na biblioteca da escola, ela foi a uma grande livraria e encontrou Contos de morte morrida. Foi uma sorte, porque quase nunca se encontram meus livros nas livrarias, sejam grandes ou pequenas. A professora o comprou e emprestou pro menino. Dali a alguns dias, quando ele o devolveu, disse pra ela: acho que agora eu sei o que aconteceu.

Já passei por outras situações parecidas com esse mesmo livro e mais uma vez o que senti foi contraditório. Esses velhos contos, com seu humor seco, não são um esparadrapo pra colar sobre o câncer. Sejamos explícitos, que Deus me perdoe: não vendem esperança nenhuma. São apenas uma mão no ombro, uma voz dizendo sinto muito, meu caro, as coisas são assim. Vamos falar disso?

 

***

Ernani Ssó é autor de Contos de gigantesAmigos da onça e As lendas urbanas da morte, entre outros. Nasceu em Bom Jesus, RS, num ano de neve. Em 1974 entrou para o jornalismo, porque queria ser escritor. Saiu em 75, pelo mesmo motivo. Tem livros para adultos, mas prefere os infantis, porque são mais difíceis de escrever. Chama-se Ernani por causa de um galã de radionovela e Ssó, esse erro de revisão, de maluco, ou para não se sentir muito sozinho, como disse Mário Quintana. 

 

***Ilustração: Marcelo Tolentino

 

 

 

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